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Duas vidas e duas caras
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Duas vidas e duas caras

A Paulicéia encaretada
Pintura de Mario de Andrade feita por Tarsila do Amaral (Foto: Tarsila do Amaral/Divulgação )
Foto: Tarsila do Amaral/Divulgação Pintura de Mario de Andrade feita por Tarsila do Amaral

Voltei a São Paulo.

A cidade da minha adolescência e início da vida adulta está mais triste e careta.

Na ruas, padarias, metrô, centros culturais,bares e esquinas, a gente se olha, se toca e se cala, e se desentende no instante em que fala, como diria Belchior, o mais paulista dos cearenses (Afinal, viveu a maior parte da sua vida por lá).

Se fosse utilizar o conceito de Walter Benjamin, o de imagem dialética, diria que é preciso congelar a cara dos paulistas vendo Mário de Andrade sair do armário de gênero e de raça 102 anos depois da semana de 22 (e 70 anos depois da sua morte).

Segundo escreveu Benjamin, em tais imagens o fluxo dos acontecimentos "deveria ser subitamente imobilizado, 'congelado', para que a consciência do observador pudesse escapar à tirania da aparência de 'normalidade' e, assim sendo, permitir ao habitante urbano refletir criticamente sobre o seu sentimento atual diante da realidade urbana.

Seria preciso sair do armário da normalidade para enxergar uma história desencantada da cidade, caso essa não tivesse sucumbido à forma-mercadoria,

Mas São Paulo já é forma-mercadoria por excelência.

Vamos a alguns pontos do meu trajeto-viagem.

1.Maria de Andrade saiu do armário.

No Museu de Arte de São Paulo,visitei a mostra Mário de Andrade: duas vidas, com curadoria de Regina Teixeira de Barros.

No catálogo a curadora diz:" Mário de Andrade (São Paulo, 1893-1945) é um ícone da literatura e do modernismo no Brasil, além de ser um dos escritores mais estudados do país".

Meu Deus, ícone.Quem usa essa palavra diz muito de si e do seu repertório.

E prossegue: "Passados quase 80 anos da sua morte, a produção intelectual de Mário de Andrade sobre música, artes visuais e arquitetura, seus romances, contos e poemas, além dos levantamentos etnográficos realizados pelo artista, foram e continuam sendo centrais para a compreensão do modernismo no Brasil e para a construção de uma ideia de brasilidade", sintetiza a curadora coordenadora, Regina Teixeira de Barros.

2.A ideia da curadoria é apresentar Mario na perspectiva de uma sensibilidade queer. Trata-se de um recorte de 88 obras - entre pinturas, desenhos, esculturas e fotografias - do acervo do intelectual, hoje sob a guarda da USP.

A curadora resume assim o projeto:

a "tão falada homossexualidade" de Mário de Andrade, como descrita pelo artista em uma carta enviada a Manuel Bandeira em 1928, tornou-se objeto de estudo somente em 2015, quando todos os seus escritos caíram em domínio público e sua produção literária começou a ser analisada à luz de suas preferências homoafetivas, um assunto considerado tabu até então.

3.Duas vidas", subtítulo desta exposição, aparece em diversos escritos do autor e exalta a dualidade vivida por Andrade, entre a vida pública e íntima. "Mário se qualifica ora como um 'vulcão controlado', ora tomado por uma 'feminilidade passiva'; oscila entre ser um pansexual casto (!) e um monstro libidinoso", ressalta Teixeira de Barros. Em carta para Oneyda Alvarenga, o intelectual afirma: "Eu sou um ser como que dotado de duas vidas simultâneas, como os seres dotados de dois estômagos. O que mais me estranha é que não há consecutividade nessas duas vidas".

4.A exposição traz Mário em diversos quadros, retratos e autorretratos ao longo de sua vida.

De fato é curioso ver que seus amigos mais íntimos, Anita Malfatti por exemplo,selecionaram para reproduzir,um Mário branco, heteronormativo e de uma seriedade a toda prova.

5.Em Retrato de Mário de Andrade (1927), Lasar Segall registrou o poeta de frente, captando sua expressão serena em meio aos atributos modernos — como a gravata estampada com losangos e o fundo abstrato-geométrico. Apesar de reconhecê-la inicialmente como "uma das obras mais admiráveis de seu talento de pintor", em carta ao artista, alguns anos mais tarde o romancista mudou de ideia, pontuando que Segall captou o que havia de mais perverso nele.

6.Se, como dizia Benjamin, o destino da cultura numa grande cidade como São Paulo é precisamente seu caráter de mercadoria e a grande cidade é a expressão da cultura da reificação,das condições econômicas, sob as quais uma sociedade existe,principalmente na sua superestrutura ideológica,nada mais representativo de São Paulo do que o sofrimento de Mário de Andrade, afrodescente e homossexual, sem direito a sua identidade real e a sua sexualidade.

Duas vidas pode ser uma moeda de duas caras.

Duas caras, a exposição, é como São Paulo, hoje, querendo sair do armário, carentíssima e caretíssima.

Poderia ser genial. É tímida e reprimida.

Bahia e Rio nas paredes para elite paulista.

1.Se, como disse Oswald de Andrade, a alegria é a prova dos nove, Pequenas Áfricas: o Rio que o samba inventou, é de longe a melhor exposição em cartaz em São Paulo.(Instituto Moreira Salles. Na Av. Paulista com Consolação).

Ela reconstitui a cena cultural que, entre os anos 1910 e 1940, produziu e consolidou o samba urbano. Foi Heitor dos Prazeres quem viu uma "África em miniatura" na comunidade afrodescendente que, instalada à margem do Rio de Janeiro branco e europeizado, produziu uma das mais decisivas revoluções estéticas do século 20.

A chamada Pequena África se consolida e desaparece, fisicamente, entre a primeira década do século passado e o início dos anos 1940. É nesse intervalo que a região delimitada pelo Cais do Valongo e pelo Estácio, fronteira do Centro com os subúrbios, assiste ao nascimento do samba, gênero que vai ganhar o mundo a partir do lançamento, em 1917, de "Pelo telefone" de Donga.

A exposição mostra que os quintais e terreiros são essenciais na reinvenção da sociabilidade da maioria afrodescendente e da identidade cultural brasileira.

Como ressaltam os curadores,"para cada personagem notório, como Tia Ciata ou Sinhô, há um número não determinado de mulheres e homens que não inscreveram seus nomes na história, mas dela participam como sujeitos ativos.

Tudo parte da música para percorrer a intrincada rede de encontros, trocas e conflitos que ali se formou na primeira metade do século 20. Pequenas Áfricas junta consciência política, religiosidade e solidariedade para mostrar a criação do samba,talvez a mais sofisticada produção artística deste país racista e desigual.

2.A exposição em cartaz no Itaú Cultural, "Ocupação Maria Bethânia" é pequena porém genial.

Minha querida amiga Bia Lessa, curadora e criadora, procurou destacar a força da palavra e da literatura na vida de Betânia.
E conseguiu.

São apenas dois espaços expositivos. O primeiro deles está no andar térreo, onde se apresentam 98 fotos que flutuam pela sala, suportadas por cabos de aço até a altura do público. As fotos apresentam a família de Bethânia, seu lugar de nascimento (a cidade de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano), seus amigos, seu cotidiano e imagens de shows. Os cabos de aço também sustentam saquinhos de água e de terra, onde se lê o nome da cantora.

Para cada uma dessas fotos há uma frase refletida no chão, criando um contraponto entre o que se vê e o que se escreve. Entre elas, uma dita pela própria cantora: "Pessoas do Recôncavo você distingue imediatamente". Estão ali também frases de vários escritores, compositores e poetas como Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Mário de Andrade, e que inspiraram a artista. Enquanto explora esse espaço, o público ouve sons que remetem ao mar e à música.

No caminho entre o térreo e o primeiro andar, onde se encontra a segunda parte da exposição, o visitante vai se deparar com ventiladores, que foram espalhados pela escadaria.

O primeiro andar foi todo ocupado por uma instalação composta de 47 monitores com imagens documentais de diferentes períodos da obra e da vida de Bethânia, reforçando seu diálogo com a poesia e a literatura. A produção tem duração de 1h45min e é rodeada por um espelho d'água. Uma leve brisa envolve o ambiente.

Nesse andar também estão dois bordados feitos por Bethânia durante a pandemia: Rotas do Abismo e O Céu de Santo Amaro, nos quais a artista exprime, por meio de linhas, agulhas e tecido, sua intimidade com a palavra.

A exposição é simples. Mas de uma força e beleza extraordinárias.

Se, Pequenas Áfricas, tem a força do Rio na nossa cultura, Ocupação Maria Betânia mostra a potência dos baianos.

As duas exposições, ao lado da de Mário de Andrade, do Masp,são uma parte das várias caras do Brasil.

Ainda bem que o Brasil é múltiplo e tem muitas vidas e caras.

Há algo de podre no reino da Cagece

Minha rua (Oito de Setembro) é um pedaço da Varjota. Meio comercial, meio residencial.

Meio classe média baixa, meio metida a besta (Tem um restaurante chic).

Minha rua tem esgoto fedido da Cagece todo dia e a toda hora.

Exposto para quem quiser saber a competência da empresa de saneamento da cidade.

Ela trata mal todos a todos- indistintamente.

Há cinco anos moro aqui.Há cinco anos a Cagece promete resolver o problema da esquina da Frangolândia, na Frei Monsueto, o que segundo eles resolveria o problema de várias ruas daqui.

Fizeram a obra.Gastaram o dinheiro.E voltou tudo para a mesma merda.

Os nobres conselheiros da Cagece (São tantos e tão bem pagos) poderiam pedir uma investigação sobre essa obra.

 

Foto do Paulo Linhares

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