Logo O POVO+
Vida, obra e morte de Paul Auster
Foto de Paulo Linhares
clique para exibir bio do colunista

Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Vida, obra e morte de Paul Auster

O acaso na nossa vida e a atmosfera de Nova Iorque
Fenômeno foi registrado às 11h23min (horário de Brasília) e teve epicentro em Nova Jersey, estado fronteiriço de Nova York (Foto: David Dee Delgado / Getty Images / AFP)
Foto: David Dee Delgado / Getty Images / AFP Fenômeno foi registrado às 11h23min (horário de Brasília) e teve epicentro em Nova Jersey, estado fronteiriço de Nova York

Paul Auster morreu na terça-feira, 30 de abril, em Nova Iorque (EUA), aos 77 anos.

Sei que, nos últimos dias, a internet foi inundada por informações sobre o escritor e roteirista que se tornou um dos principais tradutores da atmosfera nova-iorquina.

Meus leitores, bem informados e cultos, já leram páginas e páginas sobre o defunto ilustre, mas eu não resisto a tentação de contar duas ou três coisas que sei dele (a referência ao filme do Godard faz parte do seu universo, ele era o mais francês dos escritores americanos).

A grande questão filosófica que pairava sobre todos os livros de Auster foi o acaso da vida.

Quem não leu, precisa ler "A noite do oráculo". O livro tem algo de biográfico, sendo seu próprio filho um personagem da obra.

Na vida real, o filho de Auster foi um viciado em heroína que, depois de ser acusado de matar a própria filha, morreu de uma overdose.

No livro "A noite do oráculo", ele é um escritor que escreve um romance sobre seu editor, Nick, que escapa por um triz da morte e resolve sair da sua vida. Auster parte de uma referência genial do grande escritor de livros policiais para recriar a uma pequena história contada por Dashiell Hammett.

O texto de Auster é tão bom, seco, direto como um soco no estômago, que não resisto e vou transcrevê-lo para vocês.

"Coloquei um cartucho de tinta novo na caneta-tinteiro, abri o caderno na primeira página, e olhei a linha de cima. Não fazia ideia de como começar. O propósito do exercício não era tanto escrever nada específico, como, sim, provar para mim mesmo que ainda tinha a capacidade de escrever — o que queria dizer que não importava o que eu escrevesse, contanto que escrevesse alguma coisa. Qualquer coisa servia, qualquer frase seria tão válida quanto qualquer outra, mas não queria estrear aquele caderno com uma coisa boba, então demorei olhando os quadradinhos da página, as fileiras de pálidas linhas azuis que se cruzavam na brancura e se transformavam em um campo de minúsculos boxes idênticos, e ao deixar meus pensamentos vagarem para dentro e para fora daquelas caixas traçadas de leve, me vi lembrando uma conversa que havia tido com meu amigo John Trause umas semanas antes. Nós dois raramente conversávamos sobre livros quando estávamos juntos, mas naquele dia John mencionou que estava relendo alguns dos romancistas que admirava quando jovem — curioso para descobrir se a obra deles se mantinha ou não, curioso de descobrir se os juízos que havia feito aos vinte anos ainda eram os mesmos que faria hoje, mais de trinta anos estrada abaixo. Repassou dez escritores, vinte escritores, tocando em todo mundo desde Faulkner e Fitzgerald até Dostoievski e Flaubert, mas o comentário que atingiu com maior vitalidade a minha cabeça — e que me voltou então, ali sentado à minha mesa com o caderno azul aberto na minha frente — foi uma pequena digressão que ele fez em relação a uma passagem de um dos livros de Dashiell Hammett. "Tem um romance aí em algum lugar", disse John. "Estou velho demais para pensar nisso, mas um garotão como você podia voar bem alto com isso, transformar em alguma coisa boa. É um ponto de partida fantástico. Só precisa de uma história para acompanhar." Ele se referia ao episódio de Flitcraft no sétimo capítulo de O falcão maltês, a curiosa parábola que Sam Spade conta para Brigid O'Shaughnessy, sobre o homem que abandona a própria vida e desaparece. Flitcraft é um sujeito completamente comum — marido, pai, empresário bem-sucedido, uma pessoa sem nada do que reclamar. Uma tarde, quando está indo almoçar, uma viga despenca do décimo andar de um edifício em construção e quase aterrissa em sua cabeça. Cinco centímetros mais e Flitcraft teria sido esmagado, mas a viga não o atinge e, a não ser por uma pequena lasca de calçada que salta e o atinge no rosto, ele segue adiante são e salvo. Mesmo assim, o fato de escapar por um triz o abala, e ele não consegue tirar o incidente da cabeça. Como diz Hammett: "Ele sentiu que alguém levantou a tampa da vida e deixou que visse como funcionava". Flitcraft entende que o mundo não é o lugar sadio e organizado que imaginava, que entendeu tudo errado desde o começo e que nunca percebeu nada de nada. O mundo é guiado pelo acaso. A contingência nos persegue todos os dias de nossas vidas, e essas vidas podem ser tiradas de nós a qualquer momento,sem nenhuma razão. Quando Flitcraft termina seu almoço, conclui que não tem escolha senão submeter-se a esse poder destruidor, e pôr abaixo sua vida por meio de algum ato sem sentido, inteiramente arbitrário de autonegação. Vai combater fogo com fogo, por assim dizer, e sem se dar ao trabalho de voltar para casa, nem se despedir da família, sem se dar ao trabalho nem tirar dinheiro do banco, levanta-se da mesa, vai para outra cidade e começa a vida toda de novo".

A segunda coisa que aprendi com Paul Auster foi a retirar dos seus livros a atmosfera cinematográfica do Brooklin. Paul achava que só o cinema conseguia dar "corpo" a algo que não pode ser apreendido por um sentido exato.

Talvez por isso ele se transformou em roteirista. E depois que li "Trilogia de Nova Iorque" (1985/86) a cidade nunca mais seria a mesma. Quando visitava NY, eu não estava mais lá, estava num livro/filme de Auster.

Depois da tragédia com seu filho, ele lutou contra um câncer e, quando parecia ter vencido, sucumbiu à doença. Vou repetir o parágrafo do "Oráculo" (o livro) que me parece sintetizar o conceito chave de sua vida e obra:

"O mundo é guiado pelo acaso. A contingência nos persegue todos os dias de nossas vidas, e essas vidas podem ser tiradas de nós a qualquer momento, sem nenhuma razão."

Algumas ideias

1. Está faltando alguma coisa na tragédia de Camocim. Não quero acusar nem inocentar ninguém, nada justifica um assassinato. Mas é preciso entender o que as matérias da web a muito custo chamaram de assédio seguido de um surto. Declaração do Garçom Antonio Charlan Rocha, acusado de matar o vereador: - Queriam sequestrar minha filha pra vender para fora. Tem muita gente no meio envolvida. É muito grande, muito forte…". Pode ser um surto em relação a um assédio, mas, se o garçom tivesse dinheiro e um bom advogado, a explicação com toda sua complexidade já teria aparecido.

2. No começo do Governo Elmano, eu disse aqui que ele teria alguns abacaxis gigantes para descascar: equilíbrio fiscal do Estado, desempenho econômico e segurança pública. O estudo da Firjan, feito a partir dos dados da Secretaria do Tesouro Nacional, apontando o Ceará como o terceiro maior déficit público projetado para 2024, logo após dos conhecidos endividados Rio e Minas, e o balanço dos crimes violentos letais acontecidos no Brasil apontando o Ceará como a segunda maior alta do trimestre, devem ter deixado Elmano de cabelo em pé.

Foto do Paulo Linhares

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?