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Ex-cêntricos e geniais
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Ex-cêntricos e geniais

Quatro perfis de personas intelectuais para entender a cultura além do eixo hegemônico
Foto de Augusto Pontes em 1988 (Foto: Alcides Freire)
Foto: Alcides Freire Foto de Augusto Pontes em 1988

O problema da construção de uma produção cultural potente simbolicamente para uma região periférica como a nossa, falo aqui do Ceará, que se situa na periferia da periferia do mundo, não é uma questão menor.

Ter capacidade de impor um jeito de ser, cantar, falar e pensar nos livros, streaming, música, enfim, nos conteúdos culturais, me parece a chave competitiva no mundo contemporâneo.

Não falo só do chamado soft power, que significa muito mais a capacidade de exportar produtos com identidade. Quero dizer e vou repetir: como é possível criar conteúdos relevantes numa região dependente e culturalmente inter-periférica?

Não falo também de uma ideia identitária velha (a chilena Ariana Harwicz, no seu genial livro "O ruído de uma época", diz que esta época lê mal porque lê a partir da identidade).

É preciso se desvencilhar das armadilhas do folclorismo, que ganhou o nome ideológico de cultura popular, e a tal busca da cor local, eles só produzem uma cultura regionalista e extremamente particularista.

O essencial de tudo é inventar uma tradição cultural capaz de entrar em tensão e superar os limites da ilusão referencial e da dependência eurocêntrica ou americanófila.

Um dos primeiros grandes sinais dessa batalha simbólica é o aparecimento nas metrópoles regionais de intelectuais outsiders, sofisticados, corajosos e movidos por uma capacidade de, através da inteligência, se livrar das amarras coloniais com o brilho da ironia e da crítica mais corrosiva.

Em Buenos Aires, Fortaleza, Havana e Budapeste, quatro metrópoles regionais, é possível localizar personas intelectuais com essa capacidade.

Vou tentar apresentá-los aqui.

Dois deles foram ficcionais, dois outros são de carne e osso.

Comecemos pelo argentino. Macedonio Fernández (1874-1952) é o mestre que Jorge Luis Borges inventou. Sim, não escrevi errado. Em lugar do mestre inventar o discípulo, o filhote inventou o pai intelectual.

Em sua biografia irônica e destruidora, "Papéis de recienvenido" ("Papéis de recém-chegado") Macedonio escreveu:

"Nasci portenho e em um ano muito 1874. Não então imediatamente, mas logo depois, já comecei a ser citado por Jorge Luis Borges, com tão pouca timidez de encômios que pelo terrível risco a que se expôs com essa veemência, comecei a ser eu o autor do melhor que ele havia produzido. Fui um talento de fato, por avassalamento, por usurpação da obra dele. Que injustiça, querido Jorge Luis." (Macedônio, "Papeles de Recienvenido")

Macedonio era um intelectual de vanguarda, digo no sentido do que escreveu: desconfiando da possibilidade de representação do real. Segundo alguns críticos, foi o primeiro da América do Sul.

Amigo do pai de Borges, tinha um estilo difícil, questionador do texto lógico, direto. O discípulo captou todos os aspectos filosóficos, literários e textuais, mantendo um padrão lógico no estilo.

O resultado foi o sucesso avassalador de Borges que passa a render homenagens a Macedonio por toda a vida.

"Eu naqueles anos o imitei, até a transcrição, até o apaixonado e devoto plágio." (Borges, "Macedonio")

Macedonio dizia que na arte no século XX já tinha mostrado tudo o que existe. Era preciso começar do zero.

Então, ao longo do século XX, Macedonio escreverá uma extensa obra, tão ou mais extensa do que a de Borges, dedicando-se a fazer uma literatura sobre o que não havia sido dito ainda, ou seja, uma "continuação do nada", que é o título de um de seus breves romances. Borges, seguindo essa premissa de seu mestre, desenvolve em toda sua obra uma reescrita de Macedonio.

Macedonio, como todos os gênios ex-cêntricos, tinha uma ironia fina, penetrante e atribui ao humor uma função sobretudo metafísica, na medida em que o humor tem por objetivo questionar a certeza do leitor acerca das leis da lógica e dizia que preferia não ter escrito sua teoria sobre o humor se alguém pudesse, finalmente, criticá-lo por não ter sido capaz de criar nenhum chiste em sua vida. Disse isso e passou a vida inteira criando chistes, jogos de palavras, anedotas. Um clássico dele foi numa conferência onde ninguém compareceu e na qual ele disse: "Faltaram tantos que, se faltar mais um, não vai caber".

O segundo personagem de carne e osso foi o cearense Augusto Pontes.

Augusto era genial sob vários aspectos.

Sim, ele dominava a poesia, o texto escrito com toda a investigação sobre representação que a vanguarda trouxe.

Ele escreveu os versos mais bonitos da MPCe: vida/vento/vela/ leva-me daqui. E criou o rapaz latino-americano numa carta para Belchior. Também fez a letra da música Carneiro, a reflexão central sobre o dilema cearense de ir embora para o sudeste fazer sucesso ou ficar anônimo num campo cultural anódino (Amanhã se der o carneiro vou me embora pro Rio de Janeiro/As coisas estão lá e vou voltar em vídeo tapes coloridos pra menina distraída repetir a minha voz).

Mas ele foi também o crítico cultural corrosivo (o mérito do cego não está no guia) com os eternos "descobridores" do popular.

Aliás, este me parece um ponto fundamental. A.Pontes não fazia chiste por fazer. Cada frase tinha um sentido de crítica cultural (já dizia Lao Tsé, agite, agite, mas traga o meu jeep. Um grande líder não pode andar a pé). Essa sobre a canonização das lideranças políticas de esquerda.

Augusto foi o articulador de grupos, o que possibilitou a ideia do Pessoal do Ceará ser compreendido como um conjunto de pessoas articuladas de uma cultura. O sentido da Massafeira era repetido por ele, tem que ser uma turma senão não seria muita coisa. E essa turma pensava e vivia sobre as questões da cidade de Fortaleza — ele nunca abandonou a cidade como marco de irradiação simbólica.

Escritor/poeta/articulador e finalmente filósofo.

Ele era filósofo de formação. E tinha uma maneira absolutamente original de encarar e entender o mundo.

Beatriz Bracher, sua aluna em Brasília, escreveu um texto no livro sobre ele ("O real com Chico Pontes") que me parece essencial para entender o personagem.

"Chico era admirável e assustador", o pessoal de Brasília o chamava de Chico Pontes. "Nunca tinha conhecido alguém tão interessado no mundo, tão desabridamente honesto e brilhante na análise que fazia deste mundo".

E lá na frente ela explica: "Eu me surpreendia com sua forma de notar as coisas prosaicas que nos cercavam. Mesa, rótulo de refrigerante, maneira de coçar a orelha, escrever hum no cheque no lugar de um, falar mal de compositores, falar bem de compositores, andar devagar ou rápido, abraçar um amigo mais demoradamente..."

E aí entra uma última perspectiva humana de A. Pontes.

Ele amava a rua e cada milímetro do espaço público, principalmente bares e restaurantes. Eram lugares de ele pensar e fazer performances.

Em síntese: era um intelectual da cidade.

A língua que Augusto decifrava, investigava e tencionava era a língua da vida na cidade de Fortaleza.

O desejo de cidade no seu jeito de viver e pensar era tão forte que, quando viajávamos em pouco tempo, no primeiro dia, ele dizia:

- Amigo, vamos voltar. Preciso de um garçom, calça preta, camisa branca, bandeja e uma cerveja bem gelada.

Macedonio, sabemos, tinha uma utopia rural, chegou a fundar com amigos uma fracassada colônia no Paraguai.

Já A. Pontes amava a cidade com suas formas estéticas e mitos culturais nascidos dela.

O terceiro personagem é Kornél Esti, alter-ego do escritor húngaro Desso Kosztolányi, um boêmio cheio de ironia e autoironia, contador de histórias de mesa de bar e autor de monólogos, cheios de sarcasmo e de sabedoria.

O livro de Kosztolányi ("O tradutor cleptomaníaco") acaba de ser lançado no Brasil e conta a história de um tradutor, homem votado ao furto com tal dedicação que era capaz de roubar até personagens de livro

Há um conto sobre o fabricante de piteiras que desapareceu, caso típico da região: "Os franceses desaparecem à inglesa, os ingleses à francesa... Se alguém, por falta de emprego e trabalho, se cansa de jejuar e resolve deixar a família, e as alegrias pertinentes a ela, e depois com cinco ou seis quilos de pedra passa do peitoril da ponte diretamente para o Danúbio, ou salta de cabeça do quinto andar para o meio do pátio, então esse desapareceu à húngara".

Pois bem, o Kómel Esti é o A.Pontes e o Macedonio fictício de Bucareste.

Por fim, você pode entender Havana antes da revolução socialista, através da escrita de Cabrera Infante que recria cidade que ele amou e onde foi ministro da Cultura nos primeiros anos do socialismo.

Seu livro, "Tres Tristes Tigres", um trava-língua que Macedonia adorava, abre com uma nota do autor que diz que esse é um livro que "deve ser lido à noite". Um romance que é, de acordo com o autor, uma celebração da noite tropical, e ele faz até uma listagem de temas obsessivos: "Havana, a língua inglesa, a literatura, a gíria da cidade, as havanesas, as matinês, o bolero radical, o movimento de carros no Malecón, e também a nostalgia e a noite".

Na parte final da edição que fala da vida do autor, observamos que um dos principais choques do romancista com a revolução socialista, além da chamar Cuba de de "Kafkalândia" foi a destruição da vida noturna de Havana, descrita por ele como tendo sido transformada em "cidade fantasma". O livro mostra a paixão de Cabrera Infante pela vida noturna da cidade caribenha, os duelos de reputação nas boates e nas ruas, as andanças ébrias e sem rumo, as discussões e conversas intermináveis sobre sexo, álcool, literatura, cinema, tudo que aparece até aqui na via dos nossos ex-cêntricos geniais.

Mas o Macedonio/A.Pontes do Romance, é o personagem Bustrófedon, cujo nome já indica um modo de escrever sem necessariamente fazer sentido. Trata-se de um escritor com perfeito domínio dos instrumentos do idioma, que simplesmente não escreve.

O seu melhor legado são memórias cuidadosamente guardadas em páginas em branco sob o peso de um penico, ou transcrições de gravações de pastiches de autores cubanos (José Martí, Lezama Lima, Alejo Carpentier etc.), que acentuam histrionicamente alguns de seus sestros estilísticos. Bustrofédon lê dicionários e joga com as palavras de maneira a fazê-las resistir à sua fixação nos sentidos correntes, segundo a perfeita tradução conceitual de Alcir Pécora.

Enfim, esses geniais ex-cêntricos me parecem que são respostas às transformações urbanas destas metrópoles periféricas e representam o nascimento de campo cultural estruturalmente frágil que está sempre à margem da cultura dominante.

 

Foto do Paulo Linhares

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