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Icaraizinho de Amontada O novo paraíso do eco-turismo Internacional
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Icaraizinho de Amontada O novo paraíso do eco-turismo Internacional

Do contrato social ao contrato natural
Tipo Análise
Imagens de Icaraizinho de Amontada (Foto: Paulo Linhares)
Foto: Paulo Linhares Imagens de Icaraizinho de Amontada

Chegamos sexta à noite. Descemos na praça da Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Navegantes e depois caminhamos até a praia. Era uma noite feérica. Carros na praia, pessoas andando à beira mar e ao fundo um sol morrendo por trás de uma linha de gigantescos ventiladores eólicos.

Bares cheios, restaurantes sem capacidade de receber clientes que não fizeram reserva, ruas lotadas de transeuntes. Não era agosto de baixa estação. Era a altíssima estação de férias dos europeus.

Comecei a processar aquela matriz. Chamemos de phisioTrix. Matrix era a ideia de usar a inteligência humana para controlar o mundo. PhysioTrix é a ideia de controlar o mito da natureza (physio) para turbinar o ecocapitalismo.

Icaraí de Amontada é o cenário futurista da economia do turismo eco-esportivo internacional e a nova economia das energias verdes (eólica no caso do Icaraizinho, pela força dos seus ventos). É o Ceará litorâneo de amanhã, acontecendo agora mesmo, hoje.

A maior parte desta população que consome na cidade é francesa, argentina, holandesa e italiana. Os dois principais restaurantes da cidade hoje são um argentino (Umami, um neo-asiático de chefe e equipe argentina) e o italiano (Pasta D' Amare, um italiano de chefe e atendimento napolitano).

É bem fácil ver o que as pessoas acham que estão fazendo: tendo um retorno à vida comunitária através da rotina no mar e da noite numa cidadezinha perdida nos trópicos. Mas vale a pena examinar o repertório usual de estratagemas, falsas identidades, evasões que se passaram de fato na cabeça daquelas pessoas. Uma Europa lotada com a população saturada da lógica de recepção. Barcelona está proibindo alojamentos tipo Airbnb, Lisboa segue no mesmo rumo, etc etc etc.

Não é preciso ir muito longe para entender que se trata de um gigantesco ato falho e o que aquelas pessoas estão tentando entender é como ficaram os seres que eles colonizaram, expropriaram e nem mesmo acreditavam (a maior parte, continua acreditando) que fossem humanos. E o que é mesmo que aquela gente está fazendo hoje? Essa, na verdade, era a questão que mais me intrigava.

Não foi difícil descobrir que, naquele cenário, estavam contracenando (um teatro mesmo) quatro tipos ideais weberianos.

O evangélico. Fiquei em Moitas, uma amiga que conhece bem o distrito disse que Moitas hoje tem três ou quatro católicos. A população é majoritariamente evangélica e vende suas terras e investe em atividades ligadas a hospedagem e turismo. A lógica da ética protestante Weberiana aqui encontra um solo fértil para gerar bons dízimos.

O faccionado. É a cena clássica. Placas, postes, muros pichados com inscrições que mostram a disputa por território, CV2 manda em Moitas e os comando tropa Glock e tropa DR. Quando chegamos ao Rio Aracatiaçu, o rio que deu origem à palavra Icaraí (Icaraí quer dizer rio abençoado), vemos permanentemente os olhares vigilantes, a radiografia clássica dos territórios faccionados. Matrix é fichinha para Physiotrix em termos de vigilância permanente. Eles são muito bons pras esses gringos. Melhor que a polícia. Nada de ruim acontece com eles. Podem cheirar, podem beber, podem fumar. Já um nativo pobre, tá ferrado. Eles enquadram. Me contam, alertando que não podem falar muito sobre esse assunto. É como a famosa etnografia de Gilberto Velho, Anjos e Nobres, quase 50 anos depois.

O turista eco esportista europeu. Despreocupado, eles se concentram em esportes como kite surf, andar de triciclo, de barcos e têm a força do dinheiro para garantir sua liberdade. É o retorno à terra sem males para suportar o mal-estar civilizatório.

O investidor do Eco-capitalismo. Vão de médios a grandes negociantes do turismo até os invisíveis todo poderosos negociantes do vento.

Icaraizinho é, portanto, este pequeno mundo experimental do tecnocapitalismo que se alimenta infraestruturalmente dos dois grandes mitos: o da energia verde e o do turismo/consumo limpo - de cidades, serviços, produtos que prometem um retorno à natureza.

Um negociante de ecoturismo me explicou:

- É assim que se viaja hoje em dia. Nós fazemos alguma coisa para eles se manterem à distância do que vivem. Uma desorientação.

- E você monta passeios, caminhadas, evasões que propiciam essa sensação?

- Eles acham que sim. Eles têm uma versão modificada das aventuras dos seus antigos. Eles não querem que mude nada. Eles têm que se manter nas suas vidas no resto do mundo e passar as férias num outro mundo.

Acredito que essa é uma boa síntese. Icaraizinho pode perder o I inicial. É uma metáfora bem humorada, mas precisa.

Um retrato do nosso futuro, já domesticado. Se o jovem Max Weber baixasse aqui hoje diria assim: um paraíso produzido pela ética narcoprotestante e pelo espírito do eco-capitalismo.

Não, não me entendam mal. É mesmo uma maravilha. Eles invadiram nossa praia. Temos mais é que ir lá e usufruir também conscientes de que fomos da gaia ao antropoceno. Explicando Bruno Latour, o filósofo francês por excelência deste assunto: Gaia é um sistema integrado mas instável de geosfera, biosfera, antroposfera e tecnosfera.

Já o conceito de Antropoceno, leva em conta as evidências sobre o impacto do ser humano no planeta. Todas as eme que nós fizemos, comprovadamente.

Mesmo assim, Icaraizinho vale a pena mesmo. Não tem nada de distopia. Nisso os gringos têm razão. E as críticas não são mero moralismo ascético. É só um arsenal compreensivo para entendermos em que espécie de mundo o Ceará está necessariamente submerso. Afinal, não se sai do contrato social para o contrato natural, como imaginou o filósofo Michel Serres, como quem toma banho de lagoa (por sinal, lá tem uma ótima para o banho, na ilha das cobras) e limpa todas as impurezas da terra.

Onde comer

Comida de argentino

Umami. O chefe é argentino. Como a Argentina não tem gastronomia própria, só carne, batata e empanada, eles inventam coisas assim. A cozinha segue essa onda neo asiática. Acho um saco pelo preço astronômico. Mas o local é lindo, uma pousada chic e bem iluminada e o atendimento é
muito bom.

Comida de Italiano

Pasta D'Amare. Um italiano de sonhos. Boa massa e molhos tecnicamente muito bem feitos a preços honestos. O chefe Feliciano se garante. Diria que é o melhor italiano que comi ultimamente.

Comida de brazuca

Fica em frente do Pasta. É uma petiscaria, o conceito, mas o nome, não lembro. Já cacei aqui e não achei. Tem uma piabinha frita ma-ra-vi-lhosa. Um feijão verde caprichado e serve também uns drinks muito bons. Como diz um amigo meu, comida boa, bem temperada que faz eme. Na cabeça dele, só comida com gosto faz eme. Cada cabeça uma sentença.

Melhor comida
de Moitas

Barraca do Josivane. Fica à beira da praia. Atenção, da praia e não do rio. É uma lagosta frita no alho espetacular e custa R$ 12. Deliciosa. E olha que sou de Peroba, terra da lagosta. Vale a viagem.

Foto do Paulo Linhares

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