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Outras telas
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Outras telas

E outras palavras

No começo dessa semana que termina hoje, participando de um debate na rádio O POVO CBN, tentei explicar em poucas palavras que esta eleição vai testar no Brasil um novo momento da comunicação na política.

Trata-se do que chamo de "Outras telas. Outras palavras". É o fim do horário gratuito como nós conhecemos.

Não consegui. É muito difícil resumir a realidade mais complexa em poucas palavras. Vou tentar aqui.

O escritor e jornalista mexicano Juan Villoro fez um recorte muito interessante de quando começamos a pensar o que as massas fazem quando se sentem capazes de enfrentar o poder.

Para o bem e para o mal. Não importa.

Ele lembra que em 1927, em Viena, um estudante de química de 22 anos encontrou uma multidão ensandecida se dirigindo para o Palácio de Justiça para incendiá-lo.

Até aquele momento, o principal interesse do jovem era alianças entre elementos químicos, mas ele sabia, graças a Goethe, que também os seres humanos se mesclam por afinidades eletivas. O jovem era Elias Canetti que naquela tarde descobriu sua autêntica vocação ao observar os manifestantes naquele laboratório que brindava a cidade e percebeu que cada indivíduo alterava sua conduta ao se integrar à multidão. Esse foi o ponto de partida de uma vasta investigação que se transformaria no clássico estudo "Massa e poder".

Quando observei, no Debates do Povo, que esta eleição poderia marcar o novo momento da comunicação política e como o horário eleitoral (os comerciais aí incluídos) poderia perder a força que teve até então, o sagaz Domingos Filho se contrapôs à ideia sugerida por mim de que este novo formato de formação da opinião pública não começou na eleição de Bolsonaro e que o ex-presidente só conseguiu suplantar o horário eleitoral porque tinha sido esfaqueado e ganhou a disputa da mídia sem precisar de horário gratuito.

O contra-argumento só comprova a tese original. A massa de informação criada fora da TV aberta ganhou as ruas.

As outras telas nessa eleição - leia-se outras telas por telefone celular, tablet, laptop - vão produzir mais informação legitimadora dos candidatos do que a TV aberta?

Quem trabalha com comunicação sabe que este momento já aconteceu em outras áreas de mercado.

O "comercial de 30 segundos" já era.

A guerra dos canais abertos para impedir a medição dessa audiência dará um bom romance, mas esse é um assunto para outra coluna.

Na verdade, hoje a maior parte da audiência funciona assim: uma parte utiliza uma forma que os publicitários chamam de "segunda tela".

A experiência do usuário ocorre em múltiplas plataformas (começam na TV e terminam em um site mobile, por exemplo). Isso acontece graças à lógica da convergência, onde um dispositivo complementa o outro. O objetivo da segunda tela é fornecer uma experiência extra e complementar àquela primeira, para envolver ainda mais o telespectador com o que está sendo exibido. Ou seja, a segunda tela é uma plataforma bastante estratégica, pois dá vazão a valores como sentimento de pertencimento e participação. Na década passada, quando as redes sociais começaram a ganhar adesão e se proliferaram, as mudanças de hábito do público não se limitaram apenas à internet. Com laptops mais leves e, posteriormente, com tablets e smartphones, as pessoas passaram a acessar sites interativos, ao mesmo tempo, em que assistiam à televisão, iniciando espontaneamente o costume de comentar na tela menor o conteúdo que viam na tela maior.

A partir daí, não demorou muito para que as TVs e anunciantes vislumbrassem a oportunidade de interagir mais com a audiência e até mesmo encontrar potenciais telespectadores dentro de novas plataformas digitais.

Além de ser útil para que o usuário possa obter informações a respeito de programação ou tirar dúvidas sobre o que é exibido na tela na TV, o termo segunda tela (second screen) se refere a um dispositivo eletrônico adicional (como um smartphone, tablet ou computador) que permite ao telespectador interagir com o conteúdo de um dispositivo eletrônico principal (televisão, rádio e até cinema). Este fenômeno tem sido cada vez mais recorrente, com pessoas acompanhando a programação da TV em aplicativos mobile como Twitter e Facebook. Vários programas estimulam isso com a criação de hashtags.

Você pode não ter se dado conta ainda, mas nós estamos nos tornando cada vez mais "multiscreeners". Recentemente, o Google realizou uma pesquisa onde isso fica bem claro. O estudo "The New Multi-screen World: Understanding Cross- platform Consumer Behavior" mostra como interagimos com os diferentes dispositivos de forma complementar e/ou simultânea. Nos Estados Unidos, 87% dos telespectadores usam pelo menos um dispositivo de segunda tela enquanto assistem à televisão. No Brasil, 73% dos brasileiros usuários de internet a utilizam enquanto veem TV. Ainda de acordo com a pesquisa, 90% do tempo diário gasto com consumo de mídia acontece por meio de diversas telas: passamos em média 4,4 horas na frente de celulares, tablets, computadores e TV Digital.

Grosso modo, podemos dizer que existem hoje três tipos de usuários, os jovens que abandonaram de vez a TV e usam somente celular e tablet. As pessoas adultas que utilizam a chamada segunda tela e somente uma pequena porcentagem de idoso se mantém diante da TV sem multitelas. Então, gradativamente, a Kanthal Ibope, a empresa multinacional que comprou o finado Ibope vai abandonando o teleprompter, o método tradicional de medir audiência (aquele em que o telespectador vai fazendo opções com o seu controle remoto e tudo vai sendo gravado), para um método que mede multitelas.

Mas o que essa campanha trás de radicalmente novo é muito mais do que isso.

Quando Pablo Marçal implementa várias técnicas de domínio de audiência ilusórias, ele abandona a blindagem do real de Poder e as Massas e entra num domínio de virtual que afeta a percepção da realidade.

A questão é: acabou a relação realidade e comunicação política? Agora o mundo político pode ser somente espectral. Que derivas políticas suscitam esta revolução tecnológica? Uma eleição dominada por influencers (André Fernandes tem 1 milhão e 700 mil seguidores). Será uma disputa do domínio da manipulação de massas. As telas sem mediação crítica pedem impacto, ilusão. Os "idiotas das famílias" (como define Sartre) que saíram do armário com Bolsonaro estão ávidas por esse hedonismo virtual.

Juan Villoro num livro chamado "Yo no soy robot" (ainda não traduzido) lembrou de Milan Kundera. Milan chamou atenção sobre a deterioração da intimidade na segunda metade do século XX. Em "Os testamentos traídos", o escritor observava uma pessoa que vivia no apartamento em frente e, ao regressar do trabalho, acende as luzes e começa a fazer atos perfeitamente normais. Pouco depois, fecha uma cortina e impede-o de vê-lo. Não tinha nada a ocultar, salvo a si mesmo, sua maneira de caminhar pela casa, sua maneira de acariciar sua pele. Seu bem-estar condicionado pela liberdade de não ser visto.

Parece um passado bem distante, não? Foi um mundo da intimidade que acabou. Foi substituído pelo que Jean Baudrillard chamou de "transparência do mal".

Explicar como esse furacão da exposição pública chegou à política não é fácil.

Eu tentei. A partir de agora, vocês verão incrédulos a mudança, exatamente como Elias Canetti observou as massas chegando ao Palácio da Justiça, há quase cem anos, excitados e ansiosos para exercer o novo poder.

Foto do Paulo Linhares

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