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A revolta dos remediados
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

A revolta dos remediados

Mangabeira, Safatle, Acemoglu e Jessé de Souza. O que precisamos entender da vida social para decifrar os resultados desta eleição

Na noite que antecedeu a eleição em que Lula venceu Bolsonaro, eu estava trabalhando num texto e pedi uma comida no Ifood para enfrentar a madrugada sem fome.

Quando a campainha tocou e fui receber o pedido, o motoqueiro, de uns trinta anos, me olhou sorrateiramente e perguntou se eu já tinha escolhido em quem votar. Depois de minha resposta displicente, ele começou uma ladainha tentando me convencer a votar no Bolsonaro.

Sorri, agradeci às sugestões, um tanto quanto assustado, e voltei ao trabalho pensando naquele trabalhador que naquela hora ainda estava cabalando votos para a extrema-direita.

Me lembrei de uma palestra do filósofo de sotaque americano Mangabeira Unger, em que ele falava desses pequenos burgueses subjetivos.

Diz o baiano, professor de Harvard, que é doido, mas não é burro, que no Brasil, esses indivíduos são como um pequeno Napoleão, que coloca a coroa na cabeça. Ele se fortalece e tenta enriquecer. A generosidade e a solidariedade vêm depois, não participam da autoconstrução.

Esse diálogo teológico-político, que ele tentou levar na minha porta, tem um pano de fundo social que é o seguinte: hoje, com as mudanças tecnológicas e a precarização do trabalho assalariado, a maioria dessas pessoas é pobre e apenas sobrevive. Mas seu horizonte de anseio, em vez de ser proletário, é pequeno burguês.

"O que a maioria das pessoas quer é ter um pequeno comércio, uma loja, uma fazenda, um serviço técnico. É isso que eu chamaria uma pequena burguesia subjetiva", diz Mangabeira.

Chamemos de nova classe C (pensar só em renda conduz sempre ao erro) ou batalhadores, eles não são de fato, na maioria, empreendedores pequeno burgueses, mas, subjetivamente, esse é o sonho.

O meu amigo, o sociólogo Jessé de Sousa, fez um belo estudo sobre eles quando, no segundo governo Lula, ascenderam com o período de alta de commodities e botaram na cabeça a ideia de ganhar a vida por seus méritos com o apoio das esperanças religiosas articuladas pelas igrejas neopentecostais e o chamou de Os batalhadores. A eles foi prometido o acesso à classe média, com seu ócio, seu capital cultural e seus corpos torneados nas academias. Mas esse paraíso nunca chegou. Daí o ressentimento de hoje com o PT.

Num recente livro, "O pobre de direita", Jessé de Sousa atualiza historicamente essa classe (weberianamente, claro) explicando que suas razões de optar por essa religiosidade não são meramente econômicas, são de natureza moral:

"A economia moderna se esforça, por conta disso, em ser percebida como se fosse a imposição de uma 'razão técnica' neutra e distanciada. Tudo foi feito para que não se pense mais a economia como 'economia política', ou seja, como uma realidade política e, portanto, moral, como era pensada no século XIX. Isso significa que o móvel último de nosso comportamento social, como Hegel já havia intuído, é sempre 'moral', quer saibamos disso ou não".

Foi o que tentei explicar para Ciro Gomes, outro dia, nos Debates do Povo, e não consegui pela dificuldade dele de ouvir o outro.

A reconstrução da hierarquia moral na cabeça dessas pessoas que precisam de reconhecimento social e a confusão e a desorientação deles num mundo social complexo que é o destino dos desadaptados, abre um espaço considerável para a manipulação das suas necessidades e para a criação de um ressentimento social que os mobiliza brutalmente.

Combater a desigualdade é importante, mas não é suficiente para o Brasil fortalecer sua democracia sob o novo governo, já previa, em 2023, o economista Daron Acemoglu, coautor do best-seller "Por que as nações fracassam" e que acabou de ganhar um Nobel.

"Ao menos que Lula encontre uma forma de atrair uma parcela significativa da população que se desencantou com a democracia brasileira, não será um caminho fácil", dizia Acemoglu.

Para o professor do MIT, o presidente brasileiro precisa ir além dos programas sociais para vencer a polarização do País.

"É preciso criar melhores oportunidades de emprego para a classe média trabalhadora", sugere o economista turco-americano, de etnia armênia.

Vladimir Safatle, um dos raros pensadores sudestinos a abandonar as tautologias sociológicas da USP, tão acalentadas pela elite paulista, elas são o que chamo sociologia para incautos, também foi no alvo:

"Quem dá a pauta do debate hoje é a extrema-direita. O que nos resta até agora é ficar desesperadamente tentando construir frentes amplas para tentar barrar a ascensão da extrema-direita. Com isso, as pautas da esquerda vão se descaracterizando."

Safatle diz o óbvio, mas vale repetir: o primeiro turno de 2024 foi um "alerta vermelho" para o PT. Se as coisas continuarem como estão, a extrema-direita volta ao poder em 2026, com certeza", declara.

Para entender esse babado, em termos de opinião pública, é preciso voltar a Jessé de Souza quando ele explica essa nova divisão de classe e como elas se movem e pensam.

Grosso modo, diz Jessé, existem quatro classes sociais hoje no Brasil.

" Na base da pirâmide, a classe de humilhados e perseguidos, que perfaz cerca de 40% de nossa sociedade, é a pedra de toque para que saibamos como toda a sociedade funciona. Ela tem um efeito semelhante à casta dos intocáveis da Índia, os Dalit, que executam os serviços sujos e mal pagos que ninguém mais quer fazer."

Depois temos os remediados. São os pobres que representam outros 40%, uma espécie de classe trabalhadora precária do capitalismo financeiro, são, em sua maioria, pessoas que ganham entre dois e cinco salários mínimos. Mais socializados, têm um pouco mais de capital cultural. E eles votaram, massivamente, em Bolsonaro. Agora eles furaram a "bolha Bolsonaro" e criaram asas com os Pablo Maçais da vida. Eles representam a grande mudança nessa eleição.

Finalmente, temos 19% da classe média real e 1% dos muito ricos.

O problema, explica Jessé, é que não são apenas as classes do privilégio que se reproduzem enquanto tais a partir da opressão dos marginalizados. Também o setor intermediário dos "pobres remediados", entre a classe média "real" e os marginalizados, passa a marcar sua posição social mediante a oposição ao pobre e ao preto.

E a grande sacada do livro, a novidade de reflexão que vai provocar mais raiva na sociologia uspiana, é que Jessé enxergou agora o profundo preconceito racial (mascarado de preconceito cultural) entre os descendentes de europeus sudestinos e do sul e os nordestinos. Mas este é um tema tão quente que merece outro texto e outro debate.

O que Jessé não havia ainda visto, quando escreveu o livro, é que os remediados nordestinos também passaram de armas e bagagem para a extrema-direita.

Eles não querem mais somente políticas públicas de saúde, educação e transportes, acham que já as conquistaram. Não querem metrô e ônibus de graça, querem motos. Não querem SUS, querem seus planos de saúde. Não querem educação pública, querem escolas privadas. Ou como diz um amigo, "querem o que é deles, em espécie, como a classe média".

E os influencers políticos, nascidos da loucura das epifanias histéricas nas redes sociais, surfam nesse desespero.

E confiram os números das pesquisas deste fim de semana (lembro que escrevi a coluna na quarta-feira). Enquanto a extrema-direita atraiu forças locais, prioritárias numa eleição municipal (o capitão Wagner e RC), o PT Camilista e seus aliados se contentaram com mais do mesmo (Lula e João Campos). E um segundo turno que poderia ser fácil para o PT, se complicou bastante com esse novo cenário nacional.

É preciso muito domínio conceitual para entender esse momento e principalmente humildade. Talvez o mais importante parágrafo do livro de Jessé, "Pobre de direita", seja esse em que ele explica como entender e enfrentar esse retrocesso:

"Desde Marx, sobretudo após sua morte, a grande questão da 'esquerda' e da luta por igualdade e democracia foi compreender o pobre 'sem consciência de classe' que apoia quem o oprime. Dizer que o pobre de direita é burro, 'bolsominion', ou que a raiz do problema é a filiação religiosa ou o caráter intrinsecamente conservador da pessoa, como muitos fazem, não ajuda muito. Afinal, como já dito, o que importa é saber o que motivou a escolha por determinada filiação religiosa, e aprofundar 'o que' a inclinação 'conservadora' lhe proporciona."

Enfim, quando pensamos que o pior já passou, o pesadelo do neofascismo recomeça. Lembro do filósofo Walter Benjamin: a barbárie, meu amigo, nunca esqueça que a barbárie sempre é possível.

 

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