Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Meu trabalho de etnógrafo urbano, de antropólogo nas e das cidades, me obriga a ter um modo de anotar e investigar, o que eu vivo e participo, sem fazer julgamento prévio.
Desde o início do século XIX, a partir da convivência de Malinowski com os trobriandeses e sua canônica monografia "Argonautas do Pacífico Ocidental", o trabalho de campo etnográfico se tornou um aspecto central da antropologia. O campo assumiu o caráter de rito de passagem para se ingressar na tribo dos antropólogos.
Em termos específicos, o trabalho etnográfico geralmente apresenta as tarefas de olhar, ouvir e escrever os relatos das pessoas em seu contexto cotidiano e não apenas nas condições criadas pelo pesquisador.
Pois foi com esse cacoete etnográfico que vivi algumas situações onde alguns aspectos da vida das pessoas poderosas foram observados sem minha interferência.
Anotei algumas situações emblemáticas durante minha vida.
Hall e a distância mínima proxêmica de Lula
Fui a Brasília com Inácio Arruda gravar um vídeo de campanha para prefeito de Fortaleza. Eu era o candidato avice. O Palácio do Planalto, que eu já conhecia, é sempre aquela coisa fria, aterrorizante, que tenciona qualquer ser humano.
Na antessala de Lula, encontro Frei Betto. Com suas calças jeans, me senti menos estranho no ninho, pois estava de jeans e blazer. Me lembrei de meu tio, Frei Marcelo, irmão do papai, dominicano como Betto, que durante minha adolescência me contou muitas histórias da sua simpatia e outras da sua superficialidade. Coisas de dominicanos. Marcelo (na verdade, o nome dominicano de meu Tio Chiquinho) foi um dos inspiradores do cartunista Henfil na criação do personagem Fradinho. Ou seja, apesar de ser um cara divertido e amoroso, era também um crítico mordaz dos seus alvos.
Entramos na sala do Presidente. Lula nos recebeu com aperto de mãos e abraços. A conversa foi a mais sem rumo e evasiva possível. Sobre banho de mar e de rio. Férias e cachaça. Lula comparou as cachaças cearenses com as pernambucanas e mineiras. Não era papo de bebum. Papo bom de especialista. Depois, os cinegrafistas chegaram e fomos nos preparar para a gravação. Eu, desajeitado como sempre, fui auxiliado por ele, Lula, claro. Ajeitou minha gravata. Tentou corrigir meu cabelo, coisa quase impossível. Arrumou meu paletó nos ombros. Parecia um pai cuidando de um filho. Me lembrei de um etnólogo inglês, Edward T. Hall ("A dimensão oculta", Editora Martins Fontes), que escreveu sobre as distâncias da intimidade. O termo proxêmica ("proxemics", em inglês) foi criado por ele para descrever o espaço pessoal de indivíduos num meio social. É exemplo de proxêmica o fato de que um indivíduo que encontra um banco de praça já ocupado por outra pessoa numa das extremidades tende a sentar-se na extremidade oposta, preservando um espaço entre os dois indivíduos.
Hall demonstrou que a distância social entre os indivíduos pode ser relacionada com a distância física. Nesse sentido, menciona quatro tipos de distância:
Distância íntima: para abraçar, tocar ou sussurrar (15-45 cm);
Distância pessoal: para interação com amigos próximos (45-120 cm);
Distância social: para interação entre conhecidos (1,2-3,5 m); e
Distância pública: para falar em público (acima de 3,5 m).
Hall ensinou que diferentes culturas mantêm diferentes padrões de espaço pessoal. Nas culturas latinas, por exemplo, aquelas distâncias relativas são menores e as pessoas não se sentem desconfortáveis quando estão próximas umas das outras; nas culturas nórdicas, ocorre o oposto.
As distâncias pessoais também variam em função da situação social, do gênero e de preferências individuais.
É claro que o poder afasta as pessoas.
Com Lula, não. É sempre distância íntima.
E esse afeto com as pessoas foi o traço mais forte da minha pequena etnografia com Lula. Com ele, é sempre distância mínima zero.
FHC e os divertidos e estranhos computadores que os americanos inventaram
Eu estava na sala do ministro da Cultura, Francisco Weffort,e conversávamos eu, o ministro e seusecretário-executivo, José Álvaro Moisés.
Eu e o ministro tínhamos algumas diferenças na compreensão de cultura. Um dia ele veio me propor criar um projeto para as capitais do Nordeste de simplesmente reproduzir em nossos teatros tudo que fosse apresentado no Municipal de São Paulo. Para ele, era o grau máximo da democracia cultural. Apesar dessas visões opostas, tínhamos uma boa relação que só se deteriorou depois que ele se separou da filha do educador Paulo Freire para casar com a secretária de cultura da cidade do Rio, Helena Severo, e eu o convidei, Paulo Freire, claro, para ser o homenageado da Feira do Livro. Paulo Freire botava fogo nas narinas para cumprimentar Weffort. E o ministro nunca me perdoou ter propiciado aquele encontro, justamente naquele momento. Na verdade, foi uma pequena vingança. Mas é outra história.
Voltando. Naquela típica manhã brasiliense seca e quente, Weffort foi chamado por Fernando Henrique no seu gabinete. E me levou junto.
O presidente estava deitado num sofá. Estendido. Era muito simpático. Eu já conhecia o casal (ele e a antropóloga Ruth Cardoso), pois meu irmão André, à época que morávamos em São Paulo, estudou na mesma classe que sua filha no colégio Equipe. Mas fiz questão de não me lembrar desses detalhes.
E me comporteicomo Malinowski numa tribo trobriandesa. Observei os três amigos, Fernando, Francisco e José. Parecia um intervalo de aulas da USP. Comentários sobrelivros novos. Viagens. Risadas altas a partir de piadas tolas de scholars.
FHC então lembrou de mostrar seu novo brinquedo. Um computador de última geração que a IBMapresentou à presidência. Fernando, divertido como um menino de quatro anos, falou das maravilhas da máquina. Sentou na cadeira e tentou demonstrar. Não conseguia executar nada. Não se levou a sério. Riu muito da sua incompetência tecnológica. Fernando Henrique tem hoje 93 anos. Vai morrer com mais de 100.
Miguel Arraes, Maria Luiza e a lua de Recife
Foi em 1997. Maria tinha sido eleita prefeita na primeira safra após abertura política.
Eu era seu imberbe e inexperiente secretário de Imprensa. Fomos a Recife a convite do então todo poderoso governador Arraes. Ele tinha voltado do exílio, ganhou a eleição numa grande festa cívica e convidou Maria para jantar no Palácio das Princesas. A mesa foi posta na varanda e a noite era de lua cheia.
Estávamos, Arraes, Maria e quatro dos seus mais próximos secretários, felizes e esperançosos com o futuro do País. Tomamos vinho, comemos peixe e, de repente, observei que todos começaram a sair de fininho. Restavam na mesa, Arraes, que já tinha tomado umas boas doses de uísque, eu e Maria.
Pois bem, sob aquele luar no Palácio das Princesas, eu estava atrapalhando uma noite romântica. Quando me dei conta, quase pulei os degraus das escadas rapidinho. Cai o pano.
José Wilker e a praia de Iracema. A Praia dos Amores
que o mar carregou Vivíamos no auge da efervescência do Instituto Dragão do Mar, a escola de arte na sua primeira e memorável versão. A Praia de Iracema era o cenário de performances animadíssimas. Uma noite, o convidado era José Wilker. O ator, cearense do Cariri, depois crescido vivido nas artes e manhas de Recife, estava numa noite inspirada. Contava boas histórias, mas com o passar do tempo começou a ficar introvertido, triste.
Era a noite de inauguração da cachaçaria do Chiquinho Gualbernei. Wilker entornou todas as que tinha direito. O levei pelo braço para pegar um vento e ver a lua. Ele me contou que tinha se separado há poucos dias da disputadíssima atriz Mônica Torres, a destruidora de corações. Ela foi casada com Wilker, depois com Marcelo Antony e com Contardo Calligaris. Era uma dor de cotovelo avassaladora que se prenunciava. De repente, já era noite alta, Wilker resolveu lavar as mágoas na praia dos amores que o mar carregou (no caso, os amores, e não a praia, como diz a canção). Tirou toda a roupa e tomou um santo banho de mar totalmente pelado, que lhe deixou são e salvo daquelas tormentosas lembranças.
Acepipes, às vezes indigestos
Espírito de porco. Se na eleição de Sarto, o animal da vez foi uma cachorrinha meio brega. Nessa última, o animal da vez foi o porco que foi maltratado pelo Inspetor Zambelli (chamado assim por ter afundado a campanha do candidato da direita, exatamente como fez a deputada com Bolsonaro). Nas culturas orientais, como a chinesa, o porco é sinal de fartura, sortee prosperidade. Não foi o caso. Mas quem mandou pelar o porco?
Ciro e RC estão, a cada dia que passa, mais parecidos com a dupla que criou o romance moderno: Dom Quixote e Sancho. Wittgenstein dizia – no seu "Tractatus Logico-Philosophicus" – que tudo aquilo que habita na imaginação pode existir no mundo real. De todos os relatos de Borges, um deles impressiona pela perspectiva dessa lógica filosófica:“Pierre Menard, autor de Quixote”, do livro 'Ficções".
No texto, encontramos a tríade dos elementos do cosmos borgeano: labirintos, bibliotecas e a literatura. Umberto Eco o retratou como o bibliotecário de "O nome da rosa".
O que explicaria a saga maldita dos dois mais preparados políticos cearenses servindo de linha auxiliar de um projeto neofascista (Bolsonaro adorou, falou com orgulho do episódio) senão eles perdidos num imenso labirinto político como um D. Quixote e seu fiel escudeiro? Vamos torcer para que achem logo uma biblioteca.
Acepipes, às vezes indigestos
Espírito de porco. Se na eleição de Sarto, o animal da vez foi uma cachorrinha meio brega. Nessa última, o animal da vez foi o porco que foi maltratado pelo Inspetor Zambelli (chamado assim por ter afundado a campanha do candidato da direita, exatamente como fez a deputada com Bolsonaro). Nas culturas orientais, como a chinesa, o porco é sinal de fartura, sortee prosperidade. Não foi o caso. Mas quem mandou pelar o porco?
Ciro e RC estão, a cada dia que passa, mais parecidos com a dupla que criou o romance moderno: Dom Quixote e Sancho. Wittgenstein dizia – no seu "Tractatus Logico-Philosophicus" – que tudo aquilo que habita na imaginação pode existir no mundo real. De todos os relatos de Borges, um deles impressiona pela perspectiva dessa lógica filosófica:“Pierre Menard, autor de Quixote”, do livro 'Ficções".
No texto, encontramos a tríade dos elementos do cosmos borgeano: labirintos, bibliotecas e a literatura. Umberto Eco o retratou como o bibliotecário de "O nome da rosa".
O que explicaria a saga maldita dos dois mais preparados políticos cearenses servindo de linha auxiliar de um projeto neofascista (Bolsonaro adorou, falou com orgulho do episódio) senão eles perdidos num imenso labirinto político como um D. Quixote e seu fiel escudeiro? Vamos torcer para que achem logo uma biblioteca.
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