Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Estava em São Paulo, na quarta-feira, 6 de novembro de 2024, quando acordei e vi que lá fora chovia fininho. O dia anterior tinha sido o dia Nacional da Cultura e fiz uma fala numa conferência do Itaú Cultural dizendo que tinha muitas esperanças em um País melhor para todos.
Quando voltei para o hotel, no fim daquele dia, liguei a TV e o mundo tinha virado um inferno.
Trump, depois de dizer, na campanha, que se eleito iria promover a deportação de milhões de imigrantes em situação irregular no país, o expurgo no funcionalismo público de "esquerdistas radicais", empregar o uso de força contra "inimigos internos", ganhou a eleição.
E disse mais na campanha: do ponto de vista externo, iria lutar pelo isolacionismo nas relações externas, com o não comprometimento prévio com a ajuda militar e financeira à Ucrânia, maior alinhamento ao governo de Benjamin Netanyahu em Israel. Trump trouxe o desprezo pelas instituições multilaterais criadas no pós-Segunda Guerra, entre elas as Nações Unidas e a Otan. Disse que vai incentivar o protecionismo econômico, com aumento de tarifas para produtos produzidos especialmente na China e no México. Depois de tudo isso, o presidente eleito recebeu, na terça-feira, aos 78 anos, uma carta-branca dos eleitores para modificar os Estados Unidos como bem entender, com enorme potencial de impacto global.
Junte-se ao Executivo e ao Legislativo a supermaioria conservadora da Suprema Corte, que decidiu este ano pela imunidade ampla aos Presidentes e, apenas quatro anos após sua derrota para Joe Biden, o republicano governará pela segunda vez a maior potência planetária com uma oposição muito mais fragilizada do que em 2016, quando surpreendeu a ex-secretária de Estado Hillary Clinton, mas recebeu 3 milhões de votos a menos do que a democrata.
Pois bem, na manhã daquela quarta-feira, eu saí às ruas de São Paulo, fui à livraria Martins Fontes, aos cafés, ao Masp e ninguém falava da América do Norte. Tudo bem, quando a Covid apareceu, foi assim também. As pessoas demoram a entender essas grandes rupturas.
E o que parece se consolidar nesta data, faz a gente pensar quando tudo começou a dar errado.
Trump pode - para o bem e para o mal - destruir o que Karl Jasper, num livro bastante discutido, "A origem e o destino da história", chamou de o "período Axial". Ou seja, essa forma de civilização que se viu durante os últimos séculos como a origem e o destino da história.
Jasper se referia ao período que começou entre 800 e 200 A.C. quando na Eurásia surgiram Confúcio, Lao-Tse, Buda e Zoroastro, os grandes profetas hebreus e os poetas, historiadores e poetas gregos. "O homem, tal como hoje o conhecemos, surgiu nessa época", diz Jaspers.
Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski, no texto "O passado ainda está por vir", discutem exatamente que, se para fins de argumentação, aceitarmos a tese reconhecidamente controversa da existência histórica de uma "era axial", o aparecimento e a popularização do conceito de "antropoceno", a partir da primeira década deste século, revelaram a obsolescência terminal do repertório teológico-filosófico, que era o legado dessa "era axial".
Para quem não conhece, o conceito de Antropoceno, largamente usado hoje, nomeia um "ato cosmopolítico total", uma catástrofe ecológica, uma tragédia econômica, uma ameaça política, uma convulsão religiosa, indica a dificuldade profunda de nosso repertório axial em repensar a época em que essas mutações prepararam, difinem Eduardo e Déborah.
Estaríamos naquela quarta-feira em que a América disse sim às ideias de um psicopata amplificadas por Elon Musk, findando a era axial?
A era axial foi demarcada e esquadrinhada assim por Eduardo e Deborah:
"A libertação e a redenção do que há de especificamente humano no homem (Jaspers); a idade da transcendência ; um questionamento crítico, reflexivo da realidade e uma nova visão do que há além (Schwartz), a era da crítica (A.Momigliano)", a descoberta ou invenção de um novo ponto de vista, a partir do qual a ordem do cosmos ou da sociedade pode ser criticada ou denunciada (C Taylor; os sistema de normas perdem sua validade quase natural (Habermas)"; um salto no ser" e a desintegração da experiência compacta do cosmos" a emergência do pensamento de segunda ordem"(Y.Elkana); "uma cultura teórica, analitica (M.Donald Bella); a negação da autoridade mítica (S. Eisenstadt); o poder da negação e da exclusão (J.Assmann); a passagem da imanência a transcendência (M.Gauchet); "a transcendência semiótica , o reconhecimento do simbólico como simbólico (D.Jung).
Sim, o mundo mudou nesta quarta-feira. Assim como mudou no dia em que os judeus começaram a desembarcar dos trens de Auschwitz e os que desciam para a direita (rechts) iam para os campos de trabalho forçado, o que iam para a esquerda (links) eram assassinados nas câmaras de gás.
Sim, essa eleição me parece o sinal verde para continuar o que começaram naqueles dias: sim , podemos segregar em massa. Sim, podemos matar em massa na Palestina sem precisar de qualquer justificativa.
Sim, o chamado ideologema da natureza e da cultura da modernidade está acabando e vamos continuar uma linha progressiva de destruição da natureza até esgotar qualquer possibilidade de renascer. Sim, o esgotamento da possibilidade de uma razão moderna foi para as cucuias. Sim, é o fim da tal era axial sem que tenha surgido ainda qualquer saída para uma recuperação do cosmos local (a terra).
Voltei andando para o hotel e atravessei toda a Avenida Paulista, as pessoas continuam silenciosas nas ruas, nos cafés, nas livrarias, e não emitem qualquer sinal de preocupação.
Mas com essa carta de "siga em frente" que Trump recebeu "a casa queimou" como disse Giorgio Agamben num livrinho premonitório.
O mundo e a sua modernidade e pós-modernidade não será mais o mesmo depois dessa quarta feira.
Não será necessariamente o seu fim. Será apenas o começo do fim do mundo como nos conhecemos.
E concluo aqui com um parágrafo premonitório de Agamben:
Que uma civilização - uma barbárie- afunde para não se levantar mais, isso é algo que já aconteceu, e os historiadores estão habituados a marcar e datar rupturas e naufrágios.
Mas como testemunhar acerca de um mundo que está se arruinando de olhos fechados e o rosto coberto, de uma república que desmoronou sem lucidez , sem orgulho em abjeção e medo?
A cegueira é tão mais desesperada porque os náufragos pretendem governar o próprio naufrágio, juram que tudo pode ser mantido tecnicamente sob controle, que não há necessidade nem de novo Deus, nem de novo céu, apenas de proibições, especialistas e médicos.
Vai começar uma temporada no inferno (Rimbaud).
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