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Martins Filho e Bergson Gurjão: entre o sacro e o temporal
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Martins Filho e Bergson Gurjão: entre o sacro e o temporal

Dois grande personagens do Ceará no Século XX
Bergson Gurjão Farias (1947-1972) 
foi aluno do curso de Química da UFC (Foto: Memórias da Ditadura/Divulgação)
Foto: Memórias da Ditadura/Divulgação Bergson Gurjão Farias (1947-1972) foi aluno do curso de Química da UFC

As duas polêmicas da semana, nessa terra bárbara, merecem uma leitura mais fria e alongada no seu tempo histórico, mas não tão longa como um livro de Philippe Áries, estes duram mil anos, cem anos nos bastam.

Antes de mais nada, deixe-me ir às origens da palavra polêmica. O vocábulo vem do grego polemik (sc. tékhn), "(arte) da guerra, (ciência) do combate", e passa pelo francês polémique, "discussão, controvérsia por escrito".

Pois bem, da guerra do que se escreve e se conta na cidade, os dois assuntos agitaram a mídia e as redes sociais: o nome da concha acústica da UFC (o nome do pai Martins Filho ou o nome de um filho rebelde, Bergson Gurjão?) e a controvérsia do confronto Cid e Elmano pela presidência da Assembleia (neste caso, o pai é Cid, e o filho oculto é Camilo).

No ano em que a Universidade comemora 70 anos, a controvérsia da nomeação da Concha Acústica de Bergson Gurjão e a movimentação da família a setores políticos contra, dividiram opiniões.

Parece uma polêmica boba. Não é. Me parece rica de nuances e possibilidades de leituras.

A criação da Universidade (nasce como Estadual e se torna Federal, depois), pelo aprendiz de tipógrafo e depois comerciante, Antônio Martins Filho, foi narrada em prosa e verso até aqui. Mais prosa que versos em autobiografias modorrentas que mais escondem a história do que mostram.

Antes que o leitor se/me situe, de um lado ou outro, nessa guerra santa, quero falar da sua complexidade.

Ao observarmos a foto, disponibilizada pela Wikipedia, ele é um branco de cabelo ondulado, o nariz é aquilino e voltairiano. Como Voltaire, Martins Filho teve vida longa, viveu 98 anos e atravessou todo o século XX (1904-20020).

Se acompanharmos sua vida pelos seus inúmeros relatos autobiográficos, a ascensão deste cratense até a fundação da Universidade e seus três mandatos de reitor foi natural e pacífica. Nada mais enganoso. A gramática da sua ascensão social e intelectual, o seu personagem real, é digno de um romance, uma biografia e várias teses históricas.

Pode-se dizer que, dentre os elementos que integram qualquer obra de ficção, o personagem é um dos que mais imprime relevância e consistência à obra literária e hoje aos livros biográficos.

O personagem que temos até hoje é amorfo, insípido e inverossímil, nascido das suas autobiografias. Nas peripécias da vida real, é um personagem marcante, capaz de dar suporte a uma grande narrativa.

Cenários, enredo, descrição de cenas, tudo isso faz parte do construto geral da história, mas é a participação da personagem, dotada de mente, alma e subjetividade, principalmente, o fundamental, para que o texto deixe de ser apenas um conjunto de palavras encadeadas e ganhe sentido literário, biográfico.

Se lemos os relatos existentes até hoje, vamos encontrar um comerciante astuto que entra na história como caixeiro das lojas Pernambucanas em Caxias, no Maranhão, e chega a gerente para depois montar sua loja com o nome de "A cearense"". A loja vai à falência.

O nosso, então anti-herói, vem para Fortaleza pedir um emprego ao poderoso de plantão. Consegue o de professor de espanhol - língua que ele não dominava uma palavra. Aceita de bom grado e passa a estudar com um professor mexicano, único disponível na cidade. Quando se considera pronto a assumir a cadeira, ela é extinta por uma reforma. Volta ao poderoso. Ele diz que tem um emprego melhor ainda, professor de direito da UFC.

Nosso Martins se lança na empreitada. As idas e recursos são dignas de um romance de Balzac. Para a tese de livre docência, ele confessa que pesquisou um tema nunca antes estudado. Seleciona direito aéreo. A sequência é tão cheia de artimanhas e superações que selecionei a seguir os três momentos fortes que merecem bons plots no roteiro:

1. Quando anuncia a criação da Universidade, Martins Filhos vai encontrar resistência na mídia nacional de ninguém menos que Gilberto Freyre. Como todo pernambucano que se acha "Leão do Norte", Freyre argumenta que Recife tem uma Universidade e basta. Martins Filho sai engrandecido dessa refrega.

2. Ao terminar seu primeiro mandato como reitor (o prazo era de três anos) Martins, que recebia centenas de pedidos de emprego, nega o pedido de um jornalista ligado aos Diários Associados (Agência de Notícias Meridional). O jornalista municia um deputado de Goiás (Anísio de Alcântara Rocha) que abre uma série de acusações na Câmara Federal contra Martins (vai chamá-lo de "reitor sem diploma"). Quem vai defendê-lo é Fernandes Távora (irmão de Juarez e pai de Virgílio). As duas peças são interessantes documentos históricos de uma época.

3. No começo do seu segundo mandato, uma greve estudantil interrompeu as atividades na Universidade a partir da Faculdade de Medicina.

Martins Filho, que confessa na sua biografia entender que as atividades dos discentes deveriam se resumir a esportes e filantropia, começa a se decepcionar com os estudantes. Essa ruptura inicia um período que culminaria com o golpe de 1964. Martins, que vinha do integralismo e se decepcionou, era amigo pessoal de Castelo Branco (que lhe doara o terreno da Casa José de Alencar à Universidade) construiu toda sua ascensão ligado a setores conservadores do Estado, parecia um personagem de tempos passados e não entendia a ascensão do movimento estudantil e nem os novos personagens que depois se transformaram em grandes guerreiros da luta política contra a ditadura.

Bergson e Genuíno Sales são dois exemplos clássicos desses guerreiros, daí a importância real e metafórica da polêmica.

Enfim, a história destes personagens ainda está para ser pesquisada e escrita. Como todos os grandes personagens, de carne e osso, eles são um pouco sacros e um pouco profanos.

Inquieto, às vezes astuto nas relações, ora soberbo, ingênuo politicamente, forte e fraco, o personagem Martins Filho se apresenta de muitas formas. A depender do contexto sócio-histórico, da proposta estética do autor, do tipo de narrativa, do meio em que se veicula a história, ele pode aparecer de forma surpreendente.

E, ao contrário do que pensam os seus guardiões da memória, a história que vai surgir será, certamente, muito mais rica e envolvente do que a narrativa débil que temos até aqui. Bergson Gurjão é um herói sem sepulcro. Um mito em permanente construção na nossa história.

A noção de um "corpo místico" e "político" do soberano, que, constitui certamente uma "etapa importante da história do desenvolvimento do estado moderno", como diz Giorgio Agamben é a própria trajetória de Martins Filho e Bergson Gurjão, que poderá ser traduzida na nossa Fortaleza como um exemplar recorte do século XX.

"El Cid" é uma superprodução épica sobre o legendário herói lançada em 1961

El Cid

A polêmica de El Cid, o campeador, me lembra também um grande personagem de um épico hollywoodiano que assisti na infância.

Não consegui fazer essa semana o comentário sobre a polêmica CId-Elmano, pois meu espaço jornalístico semanal aqui acabou.

Quero deixar a análise para a próxima coluna.

Lembrarei apenas o que uma raposa da política cearense me disse: alguém acredita que a conversa de Elmano não foi combinada antes com Camilo? Alguém também acredita que Cid não sabia? Alguém também imagina que o ajustamento do tamanho real de Cid no quadro político atual (a gente chamava correlação de forças, lembram?) e a maneira barroca de lhe comunicar não saiu da cabeça de Eudoro? E finalmente, alguém acredita que o que está em jogo é a presidência da Alece? Me aguardem.

Foto do Paulo Linhares

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