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Tesão, crueldade e putrefação
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Tesão, crueldade e putrefação

Karim Ainouz chegou com tudo(r) no streaming
Tipo Opinião
Jude Law, Alicia Vikander e Karim Ainouz durante as gravações de
Foto: Prime Video/ Divulgação Jude Law, Alicia Vikander e Karim Ainouz durante as gravações de "Firebrand, O jogo da Rainha"

A primeira experiência de Karim Ainouz em território inglês chegou ao streaming sem passar pelas telonas (veja no Prime Video). O cearense faz uma trama histórica intimista e detalha a crueldade de Henrique VIII e a putrefação da sua perna e do reino.

Mas "Firebrand" (em português, "O jogo da rainha"), que pode ser traduzido livremente como "A incendiária", é totalmente concentrado na luta desesperada da sexta mulher do rei inglês, Catarina Parr, contra a crueldade do seu marido.

Alicia Vikander faz uma rainha consciente da periculosidade do seu casamento. Henrique já havia assassinado duas e mandando ao desterro outras três, e a rainha era adepta de ideias protestantes que ainda soavam com heresia.

Bem, para entender melhor é preciso saber que Henrique joga com a questão. Mostra-se a princípio benevolente com Catarina quando lhe convém - ela era uma mulher culta, falava quatro línguas, lia muito - e ele era frio e perverso, quando se achava ameaçado.

O filme segue nesse tom e vai ficando cada vez mais denso. Os seus diálogos e as cenas de sexo vão ficando tão insuportáveis que chegamos a sentir o cheiro da perna apodrecida de Henrique.

Jude Law, com a cara grande de Henrique XVII, numa caracterização que o torna difícil de identificar à primeira vista, faz um rei obcecado e paranoico ao mesmo tempo por Catarina e suas ideias. É um papel gigantesco, de uma força dramática assustadora.

Alicia Vikander constrói uma personagem a princípio ambígua em relação ao rei para surgir no final com uma garra e uma capacidade de enfrentamento surpreendente, até matá-lo numa licença histórica de Karim.

Então, para entendermos a opção das roteiristas e de Karim é preciso enquadrar o momento histórico:

Henrique VIII, que fez um reinado absolutamente errático com seus casamentos desfeitos tragicamente, na sua ambiguidade com Ana Bolena e Catarina de Aragão, por exemplo, oscila em relação ao amor intenso e a desconfiança. Mas seguiu uma opção estratégica política bem definida: ele se livra das garras da igreja católica e da Roma asfixiante e paralisante, mas não se entrega ao protestantismo dos reinos alemães calvinistas.

Essa linha tênue foi magistralmente traçada pelo seu vice-regente Thomas Cromwell que travou uma luta intelectual e política de vida ou morte com o filósofo da Utopia, Thomas More. Pense numa guerra de gigantes.

Thomas Cromwell, que é hoje considerado o único estrategista político da estatura de Winston Churchill, venceu o filósofo More, defensor de um calvinismo mais arrebatador, que acabou enforcado, assim como Thomas Cromwell na sequência. Ou seja, como com suas mulheres, todo mundo acabava mal com Henrique VIII.

Mas é preciso ver que essa oscilação política foi responsável pela formação do estado inglês. Eles fizeram a chamada Reforma Inglesa, que separou a igreja da Inglaterra do papa de Roma e estabeleceu a igreja protestante da Inglaterra.

Para se entender o papel da dobradinha Henrique/Thomas Cromwell é bom lembrar que:

- Ele foi o responsável por anular o casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão, permitindo que ele se casasse com Ana Bolena.

- Aprovou as Leis de Supremacia, em 1534, que tornaram Henrique VIII chefe da Igreja da Inglaterra.

- Presidiu a dissolução dos mosteiros, que começou em 1536.

- Reestruturou as finanças inglesas e afastou os cupins de Roma.

Henrique VIII foi um dos principais responsáveis pela centralização política na Inglaterra, retirando o poder dos nobres e clérigos. Ou seja, a partir de Cromwell e Henrique VIII, os ingleses criaram um estado capaz de dominar o mundo nos séculos XVII, XVIII e XIX. Não é pouco o que a dupla armou.

A opção de Karim foi esquecer toda essa questão central política, que já foi motivo de alguns clássicos, e fazer um recorte da única rainha que Henrique não conseguiu derrotar.

Quem, como eu, gosta da trama política precisa ler a trilogia de Hilary Mantel (publicada no Brasil pela Editora Todavia). São três volumes magistrais que detalham minuciosamente a trajetória do Rei e o duelo de Cromwell e More. Você pega e só larga quando acabar de desbastar mais de mil e quinhentas páginas.

"Firebrand" traz o padrão impecavelmente "sujo" no formalismo técnico dos seus elementos já habitual de Karim (à la "Motel Destino", versão inglesa) e também a direção de fotografia da genial Hélène Louvart.

Se Karim faz um enquadramento histórico da dinastia Tudor que incomodou alguns críticos europeus, todos foram unânimes em reconhecer que é um retrato profundo de um dos mais temidos e cruéis reis de toda a história da monarquia europeia. Ou seja, "Firebrand" é imperdível, pois Karim é foda.

"Cem anos de solidão" na telinha

Comecei a ver Garcia Marques de "Cem Anos de Solidão" (que sempre detestou a ideia) na Netflix. Só comentarei na próxima semana para deixar meus leitores do São Luiz ansiosos.

Mas vou contar como aperitivo a historinha das duas traças. Eles se encontram depois de traçar o livro e o filme e comentam:

- Gostei mais do livro.

Ou seja, claro que não ficou à altura do livro. Mas isso era impossível mesmo. A questão é: os brazucas fariam bem melhor. A Netflix e a família não iriam nunca entregar a rapadura. Mas, que fariam não tenham dúvida.

Foto do Paulo Linhares

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