Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
O que fazer para afastar a melancolia do final de ano, agravada pela perda de um parente muito querido? Pensei em dizer ao meu filho de cinco anos que papai noel não existe, conforme sugeriu uma boa terapeuta uruguaia.
Ao nos defrontamos com um deles na rua, fiz menção de diminuir a velocidade e ele disse: "Segue em frente, papai, esse papai noel usa essa roupa, mas é apenas um homem". Livre desta responsabilidade, me dediquei aos livros e aos bons filmes no streaming.
O primeiro livro que li foi o último que o maior escritor da Albânia, Ismail Kadaré, escreveu antes de morrer. Kadaré foi um dos quase ganhadores do Prêmio Nobel durante toda a vida. Ele escreveu alguns livros realmente muito bons. O que ficou mais famoso no Brasil foi "Abril Despedaçado", que virou filme de Walter Salles.
Em "Um Ditador na Linha", R$ 39,90 (e-book), publicado pela editora Companhia das Letras, Kadaré examina um episódio histórico ocorrido em 23 de junho de 1934: uma ligação de pouco mais de três minutos, feita por ninguém menos que Josef Stálin ao poeta russo Boris Pasternak.
A conversa entre o ditador e o romancista que sempre assombrou Kadaré teria sido nestes termos. "Há pouco tempo o poeta Mandelstam foi preso. O que pode dizer a respeito, camarada Pasternak?", teria perguntado Stálin ao telefone.
"Eu o conheço pouco. Ele é diferente de mim artisticamente. De modo que nada posso lhe dizer sobre Mandelstam", teria respondido o escritor, antes de desligar o telefone.
Mas se há quem diga que Pasternak tirou o corpo fora e se dissociou de Mandelstam, ao que teve sua covardia ridicularizada pelo ditador, há ainda depoimentos que sustentam que Pasternak bateu de frente com Stálin e ousou pedir a liberdade do colega. As fontes variam dos arquivos da KGB até um relato do filósofo Isaiah Berlin. Kadaré escreve 13 versões do episódio.
"Um ditador na linha" aborda as relações entre poder e criação artística. Um tema que tem me assombrado bastante ultimamente com os aspectos hegemônicos e cerceadores que a política tem adquirido na província. O próprio Kadaré viveu boa parte da vida sobre a ditadura de Enver Hoxha, que tornou a Albânia um dos países mais fechados do mundo. O PCdoB do passou muitos anos, mesmo depois dos assassinatos em massa de Stalin, dizendo que a Albânia era o último paraíso político do mundo e elogiando Hoxha como farol da humanidade.
Kadaré, na verdade, investiga a verdade política. E como ela é uma narrativa que pode ter múltiplas versões, acaba aproximando o político do artista. Mas o episódio se torna mais fascinante quando se conhece um pouco Boris Pasternak.
Nascido em Moscou, em 10 de fevereiro, em 1890, em uma rica família judia assimilada. Filho de um professor de pintura e de uma pianista, teve uma juventude em uma atmosfera cosmopolita.
Pasternak caiu em desgraça com as autoridades soviéticas durante os anos 1930; acusado de subjetivismo, conseguiu, entretanto, não ser enviado a um Gulag. Foi-lhe atribuído o Nobel de Literatura de 1958, mas não foi autorizado a recebê-lo.
A versão cinematográfica de "Doutor Jivago", dirigida por David Lean para os estúdios MGM, foi o segundo filme de maior faturamento em 1965, atrás apenas de "E o Vento Levou". E hoje é considerado um dos clássicos de Hollywood.
Pasternak e sua família viveram em uma datcha (casa de campo russa) em um terreno em Peredelkino, no subúrbio de Moscou, por mais de 20 anos.
Em 1984, 24 anos após a morte do escritor, as autoridades russas confiscaram a casa da família do artista. Seus pertences foram jogados na rua, e familiares e amigos do autor só os salvaram com muita dificuldade. O curioso é que, como o poeta russo, Kadaré já recebeu uma ligação de um ditador comunista - Enver Hoxha - o autocrata stalinista de sua Albânia natal, que permaneceu no poder por 40 anos.
Kadaré contou que "de 1967 a 1970, eu estava sob a vigilância direta do próprio ditador. Numa situação como essa, havia apenas três escolhas: permanecer absolutamente inflexível com as minhas próprias crenças, o que significava a morte; optar pelo silêncio completo, o que significava outro tipo de morte; ou pagar um tributo, alguma espécie de suborno. Optei pela terceira solução e segui escrevendo"
Para chegar a sua própria opinião de quem foi frouxo, quem foi sábio, e pensar nas incontáveis variações sobre os autocratas e os artistas, é preciso conhecer as 13 versões de Kadaré.
Ou seja: leia "Um ditador na linha". Eu recomendo com entusiasmo.
A história da Globo contada como num Jornal Nacional
Ernesto Rodrigues começa o primeiro livro de sua trilogia "A Globo Volume 1 - Hegemonia - 1965-1984" (Editora Autêntica), contando sua demissão da TV Globo por um erro de checagem de informação, no dia 18 de maio de 1999.
"Meus 14 anos de jornalismo na Globo acabaram quando, como chefe de redação, anestesiado pelo risco de levar um furo da concorrência, plantei-me ofegante, junto à bancada de apresentação do Jornal da Globo, na então novíssima redação da emissora, no Brooklin, zona sul de São Paulo, no final de uma manhã do dia 18 de maio de 1999, e pedi que alguém confirmasse a notícia".
A notícia era da morte do atleta olímpico João do Pulo.
Ernesto perguntou na redação que tinha no momento cerca de 50 profissionais, repórteres, editores, produtores e técnicos, e alguém que ele não lembra disse: "Morreu".
A notícia voou direto para que Sandra Annenberg, apresentadora e editora-executiva, lesse o texto.
Nesta curiosa introdução, Rodrigues conta que, em outubro de 1918, ele consulta Roberto Irineu, um dos filhos de Roberto Marinho, do seu projeto de mergulhar de forma irrestrita e independente, nas transcrições dos depoimentos do Memorial da Globo, e de usar os conteúdos dos depoimentos em uma biografia da Globo.
O primeiro volume é exatamente um grande painel jornalístico
dos primeiros anos da emissora até a hegemonia.
Não tem sociologia, antropologia, teoria da comunicação. Nenhuma reflexão mínima sobre o que está acontecendo. Somente uma grande e monumental reportagem sobre o período de fundação, o imbróglio com a Time Life que financia o grande começo e sofre violentos ataques de um Assis Chateaubriand moribundo e um Carlos Lacerda (ex-aliado) furibundo por não ter recebido o apoio do Doutor Roberto para ser o sucessor civil do presidente militar, o cearense Castelo Branco.
O livro é isso: uma gigantesca reportagem com milhares de depoimentos de todos os participantes da aventura de fazer a televisão que dominou e domina, até hoje, a comunicação do Brasil.
Você passa todo o tempo de leitura tentando encontrar uma reflexão analítica. Nada. É como se a história da Globo fosse transformada num imenso Jornal Nacional no qual as notícias e a sua história fossem contadas, num texto muito bem escrito, mas sem nenhuma análise.
Impossível não imaginar que era a cláusula número 1 do projeto.
Ou seja, o livro é bom de ler, mas parece aqueles jantares de Natal nos quais você come muito, mas fica a sensação de que não valeu a pena aquelas gramas a mais que você ganhou na noite feliz.
Apaguemos a lanterna de Diógenes
A história da aprovação aloprada do projeto de uso dos drones para pulverização com agrotóxicos ainda merece uma boa reportagem.
No discurso do autor do projeto, o deputado bolsonarista do União Brasil, Felipe Mota, ameaçou avançar com 400 tratores sobre a sede do Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace) e acrescentou que se o superintendente João Alfredo Telles ousasse lhe defender, seria pisoteado pelos tratores.
Quem assistiu disse que foi um dos mais violentos e agressivos discursos pronunciados nos últimos anos na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece). Menos de três horas depois, o governador Elmano de Freitas, autor do projeto anterior que proibia a pulverização de agrotóxicos, promulgou o projeto dos drones transformando-o em lei.
Renato Roseno liderou sozinho as barricadas de defesa contra a violência e agressividade do agro para atingir seus objetivos.
Me lembrei de uma aula do meu grande (tamanho e capacidade cerebral) professor de português no Colégio Agapito dos Santos, Itamar Filgueiras, quando discutimos um texto de Machado de Assis no qual ele diz: apaguemos a lanterna de Diógenes, achei um homem. A imagem da lanterna de Diógenes é usada como símbolo da procura de homens íntegros. Diógenes de Sínope foi um filósofo grego e um dos fundadores da filosofia cínica.
Acho que o homem que Diógenes procurava era Roseno.
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