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Veja! Não diga que a canção está perdida
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Veja! Não diga que a canção está perdida

Letra de Raul Seixas pode apontar esperança para música brasileira; enquanto o audiovisual cearense brilha no cenário nacional
Imagem do programa Chico e Caetano, exibido na TV Globo na década 1980 e, atualmente, disponível na Globoplay.  (Foto: Fabio Rosso/DIVULGAÇÃO/TV GLOBO)
Foto: Fabio Rosso/DIVULGAÇÃO/TV GLOBO Imagem do programa Chico e Caetano, exibido na TV Globo na década 1980 e, atualmente, disponível na Globoplay.

Minha esposa, Isabel, sentou com seu filho de 14 anos, Felipe, ele é um fã refinado de Jorge Ben, de quem conhece tudo, e lhe mostrou o programa Chico e Caetano, exibido na TV Globo na década 1980 e, atualmente, disponível na Globoplay.

Nas primeiras cenas, Chico canta a música "Cotidiano", do Caetano ("Quando eu chego em casa nada me consola") e, em seguida, Caetano canta a música "Cotidiano" do Chico ("Todo dia ela faz tudo sempre igual"). Direção do grande Roberto Talma.

Espantado com tanta beleza, Felipe saiu com essa: "Um programa como esse hoje seria impossível, só se fosse de música sertaneja".

Ele tem razão. O agro dominou a economia do País e agora está dominando a cultura através das novelas da Globo e da música sertaneja. E com Gusttavo Lima, querem dominar a política.

Quem analisar a canção popular brasileira com calma, vai ver que, a partir de Getúlio Vargas, surge a "Música Popular Nacional", como lhe designou José Ramos Tinhorão. É quando a nova forma do samba urbano afastou-se do partido alto baiano criando um andamento mais solto. Foi o começo com Donga, Pixinguinha, Noel, Candeia, Grande Otelo e Cartola. Foi também o primeiro ciclo da canção popular.

O segundo grande ciclo começa com o impacto da mudança de voz dos cantores que passam a diminuir a exibição do volume vocal e cantar com uma respiração mais natural.

Foi João Gilberto que começou tudo e a nova tendência proliferou nas boates de Copacabana e nos apartamentos de classe média alta como o de Nara Leal. Nos primórdios deste ciclo, além de João, os grandes mestres foram Tom Jobim e o poeta Vinícius de Moraes. Nascia a Bossa Nova, em seguida identificada no conceito mais amplo de Música Popular Brasileira, a MPB.

O terceiro ciclo começa com o tropicalismo, que junta os baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Tom Zé e as ideias paulistas dos irmãos Campos (Haroldo e Augusto) e Décio Pignatari, e mantém laços com a MPB Universitária de Chico Buarque, que corre na paralela com o rock basileiro. Em seguida pipocam movimentos musicais nos estados (Minas Gerais, clube da esquina; Ceará, pessoal do Ceará).

Pois bem. O ciclo do tropicalismo, da grande MPB, e do rock como de Raul Seixas, está se encerrando e nada de tão bom surge no cenário cultural. Só o sertanejo da pior qualidade, o rap (com alguma invenção), o trap e o funk surfam neste fim dos tempos.

Quando comecei a ficar triste pensando como a música brasileira - o mais forte traço da nossa cultura - começa a entrar num momento de crise, sem ninguém genial com talento de criar canções de massa capazes de fazer arte, digo aqui fazer ante com o desafio de criar densidades, complexidades, criar versos e melodias que se tornam interpretações do Brasil, me lembrei deste verso de Raul Seixas, que depois foi modificado por Paulo Coelho: "Veja: não diga que a canção está perdida. Tenha fé em Deus (a versão de Raul dizia tenha fé em você), tenha fé na vida". Ok, Raul, mas a canção brasileira precisa recomeçar a prestar.

(Colaborou Isabel Andrade, pesquisadora em Raça, Gênero e Colonialidades e doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ)

 

'Elis Regina: Viver é Melhor que Sonhar' é um dos destaques da programação do Canal Brasil no Dia Internacional da Mulher
'Elis Regina: Viver é Melhor que Sonhar' é um dos destaques da programação do Canal Brasil no Dia Internacional da Mulher

O dia em que a pimentinha queimou minha boca

Eu era um foca do programa "Bom dia, São Paulo". Fui entrevistar Elis Regina que estava num restaurante na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio com o namorado, advogado de presos políticos, Samuel MacDowell.

Quando ligamos os paus de luz, disparamos a câmera, fiz a primeira pergunta, até válida à época, sobre o fato dela ter aceitado cantar nas Olimpíadas do Exército em pleno regime militar. A baixinha levantou-se, bateu com as duas mãos na mesa como se fosse pular em cima de mim e gritou: "não vou dar entrevista pra essa porra da Globo". Samuel tentou mediar.

Eu nunca gostei dela. Sempre gostei da Nara Leão. Hoje, passados anos, gosto mais. É que na época você organiza seu gosto em pares. E eu tinha paranoia porque, no começo da ditadura, ela fez o tal show dos militares. Outro dia, vendo o documentário "Tom e Elis", voltei a gostar dela esteticamente e até politicamente (depois de piscar para os milicos, ela os enfrentou).

 

Filme
Filme "Motel Destino"

O audiovisual cearense está bombando

O audiovisual é o campo cultural do Ceará que menos tem recebido orientação ou aporte do Estado e da Prefeitura nos últimos dez anos. Pois o audiovisual cearense está bombado! A Associação Brasileira dos Críticos de Cinema (Abraccine) divulgou uma lista dos melhores filmes de 2024 e cinco longas cearenses estão entre os dez melhores filmes brasileiros de 2024.

Os filmes escolhidos são:

  • Estranho Caminho (Guto Parente);
  • A filha do palhaço (Pedro Diógenes);
  • Greice (Leonardo Mouramateus);
  • Motel Destino (Karim Aïnouz);
  • Fenda (Lis Paim).

Eu, que sempre acreditei e briguei às pampas pelo audiovisual, fiquei feliz da vida. É raro o campo cultural cearense atravessar os padrões médios de criação e se impor pela qualidade diante da produção de todo o País, ou seja, superar, como diz Oswald de Andrade, a vela e o médium. A vela provinciana dos literatos vacilantes e a trapaça das vocações espíritas.

 

O bas-fond do lugar de fala

Adoro essa expressão dos franceses que meu amigo Alex Fleming usa. O bas-fond (pronuncia-se bafon), significando, literalmente baixaria, barraco, bagunça. Na semana passada, foi um papo da psicanalista Maria Rita Kehl questionando o conceito de lugar de fala usado pelos intelectuais e militantes dos movimentos anti-racistas.

Meu Deus, Maria Rita, uma psicanalista branca, chique, inteligente, tripudia do conceito chamando-o de "lugar de cale-se" e ainda usou um caso imaginário extremamente racista ao dizer que se um homem negro comete um crime violento contra uma criança ela "pode interferir". Ato falho, lapso freudiano, gritou a galera. Que dificuldade os brancos poderosos têm de dividir o poder de enunciação com os subalternizados? Quando você pensa que as políticas de cotas são uma proposta de igualar momentaneamente as oportunidades para poder pagar um preço pela desigualdade histórica, você entende rapidamente o que se fala.

O lugar de fala é um conceito popularizado no Brasil por meio da filósofa Djamila Ribeiro, mas que vem da "standpoint theory" das feministas negras norte-americanas (traduzindo, teoria do ponto de vista) e diz da importância de se ouvir quem não teve chance de falar ou se falou, não teve sua fala considerada como relevante sobre o tema.

O que me espanta é o incômodo da hegemônica elite intelectual deste País, onde visivelmente se vê o racismo como forma social que molda acessos e interdições aos espaços de excelência, privilégio e poder, ficando tão incomodada com um conceito tão democrático e justo.

 

Foto do Paulo Linhares

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