
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
O que este pequeno e pobre país chamado Argélia - árabe, africano e islâmico - tem a nos ensinar? Justamente o que a cultura cearense tem de mais importante a aprender: o que uma região periférica, subalterna, desigual e pobre como a nossa pode ter de mais transformador senão a força de sua cultura.
A capacidade de um povo de produzir bens simbólicos, parte central do poder cultural, fornece àquela sociedade legitimidade para impor visões de mundo sobre temas, pessoas e produtos dentro e fora de seu campo, como argumenta Franthiesco Ballerini no seu recente livro "Poder Cultural" (Summus Editora).
Um livro biográfico e um documentário mostram como Albert Camus e Karim Aïnouz nos deram lições dessa crença geradora do poder cultural. Como acrescenta Ballerini: "Leva-se muito tempo para adquirir tal poder. Às vezes, não se pode conquistá-lo nem mesmo com grande investimento de tempo, dinheiro e relações interpessoais. Isso porque um dos fatores primordiais para seu acúmulo é a crença na própria legitimidade do produtor ou artista, que pode ser imediata ou demorar muito para se consolidar, a depender de fatores paralelos".
Tomemos, portanto, os exemplos de Albert Camus e Karim Aïnouz.
Imagine aquele livro que merece um fim de semana inteiro, uma semana e até um mês dedicado a ele em uma rede branca, em uma varanda silenciosa. Ao fechar a última página, você reconhecerá que valeu a pena cada minuto de dedicação. Não, não é nenhum clássico da literatura mundial. É apenas uma biografia extremamente bem escrita. Redigida com força, contundência e paixão pelo experiente jornalista franco-britânico Olivier Todd, "Albert Camus: Uma Vida" foi lançada no Brasil pela Editora Record no fim do ano passado (disponível por R$ 160 nas livrarias e por R$ 130 na Amazon). Publicada originalmente em 1996, a obra foi recebida na França como a biografia definitiva de Camus.
E o que o Camus de Todd tem de tão genial? Para começar, nas primeiras 100 páginas, somos apresentados ao jovem Camus, filho de um adegueiro. Na produção de vinho, os proprietários ocupam o topo da hierarquia, seguidos pelo gerente e pelo chefe de cultivo, que supervisiona as vinhas. O trabalho manual é reservado aos brancos pobres. Camus, no entanto, não era considerado argelino; era um "pied-noir", termo preconceituoso usado para designar os franceses que emigraram para a África durante a colonização.
Seu pai morreu lutando pela França na Primeira Guerra Mundial. Camus e o irmão foram criados pela avó materna analfabeta e pela mãe semi-analfabeta, que recebia uma espécie de salário mínimo do governo francês. Declarados pupilos da França, os irmãos tiveram acesso à educação e à saúde.
Esse é o Albert Camus que surge nas páginas do livro: um menino pobre criado no número 17 da rua de Lyon, no bairro popular de Belcourt, em Argel. Já em Paris, Camus tornou-se uma das principais vozes da resistência contra os nazistas e, posteriormente, um dos poucos intelectuais a denunciar os crimes de Stalin. Mas sua principal arma sempre foi as palavras.
Ele dizia: "Não, eu não sou existencialista. Sartre e eu sempre ficamos surpresos ao ver nossos dois nomes associados". E ainda: "Eu não sou um filósofo. Não tenho fé suficiente na razão humana para acreditar em um sistema".
Após ser perseguido e criticado pelos estalinistas, Hannah Arendt afirmou: "Ontem, vi Camus. Ele é agora, sem dúvidas, o maior homem na França. Está muito, muito acima dos outros intelectuais".
Para quem pensa que Camus está distante de nós, vale lembrar a bela reflexão de Gilberto Morbach: "Albert Camus, o pied-noir da resistência, foi colocado no meio do caminho entre a miséria e o sol. A miséria foi aquilo que o impediu de acreditar que tudo vai bem sob o sol e na História; o sol foi o que lhe ensinou que a História, afinal, não é tudo".
O que somos nós, cearenses, senão um povo colocado no meio do caminho entre a miséria e o sol?
O documentário sobre a Argélia é "O Marinheiro das Montanhas" (disponível no Globoplay).
Antes de falar do filme, vale contar uma história que Karim me revelou em uma noite de conversa, entre sonhos de transformar esta terra em um centro de criação audiovisual e algumas taças de vinho.
Karim é filho de uma professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) que, durante seus estudos nos Estados Unidos, teve um caso de amor com um argelino. Ele nunca voltou para celebrar esse amor. Karim cresceu sem saber quem era seu pai, até que, já adulto, descobriu que ele era um rico comerciante em Paris.
"O Marinheiro das Montanhas" é um diário de viagem filmado durante a primeira ida de Karim Aïnouz à Argélia. O longa costura a história de amor dos pais do diretor com a Guerra de Independência Argelina, memórias de infância e os contrastes entre a região montanhosa da Cabília, no norte da Argélia, e Fortaleza, cidade natal de Karim e de sua mãe, Iracema.
Esse é um filme evidentemente muito pessoal", comentou Karim em entrevista a Patricia Moribe para a agência de notícias RFI por ocasião da exibição do filme no Festival de Cannes, em 2021. "Mas o maior desafio foi como tornar essa história relevante pro mundo. Porque eu podia ter feito algo num caderno, num álbum, guardado na minha gaveta e continuado no meu arquivo pessoal. Mas o que foi importante pra mim foi, um pouco, falar de como as nossas vidas hoje, como as vidas dos nossos pais, da geração que eu venho, desses lugares de onde eles saíram, são tão marcadas por experiências coloniais e pós-coloniais. Isso para mim que foi muito bonito de entender, que meus pais se encontraram porque houve uma revolução na Argélia, uma guerra de independência colonial, que fez com que meu pai fosse para os EUA, que ele encontrasse a minha mãe, que era uma mulher que estava saindo do Brasil, o que era muito raro naquela época. [...] Pra mim foi um pouco uma maneira de falar da história e de uma história tão importante e tão pouco falada. Dessas histórias cruzadas, mesmo que não fosse através de um livro de história, mas que fosse através de um poema".
O fascinante é cruzar a Argélia das lentes de Karim com a Argélia de Camus retratada por Todd. Iracema e seu Martins Soares Moreno tinham o sol da Argélia no meio. O resto é história.
O filho que ficou burro
O Instituto Dragão do Mar completou 27 anos. O instituto é a organização social que tem sob suas asas o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), o Museu de Arte Contemporânea (MAC), o Museu da Cultura Cearense (MCC), cinemas, teatro, anfiteatro, a Escola de Arte Porto Iracema, entre outras instituições que as pessoas gostam de chamar de "equipamentos", o que, penso eu, é uma rendição à desumanização travestida de impessoalidade estatal. Pois bem, quem poderia dizer na sua biografia que fez dois museus, um centro cultural, uma escola de arte?
Mas foi meu único filho que amadureceu e ficou burro. Acontece com as melhores famílias.
O Dragão hoje faz pena. Sem pensamento, que era seu forte, ficou sem rumo. Quer um exemplo? Ano passado, fizemos 200 anos da Confederação do Equador. Alguém viu algum debate? Filme? Exposição discutindo o papel dos confederados Bárbara e Tristão e o pioneirismo de suas visões de independência? Claro que não. O centro cultural está entregue a produtores de eventos. Gente especializada em contratar shows, em geral, de quem faz carreira em São Paulo, ou que está preocupada em discutir a agenda paulista de cultura. Ainda tem aquele papo de que "vamos fazer uma escuta", que serve (por um tempo) para manter tudo como está. E como é que está? Uma obra do centro cultural sem começo, nem fim. O que diz tudo. A destruição do Dragão não é impotência. É um projeto. Como dizia Camus: "Na minha idade é preciso ser sincero. Mentir é cansativo demais".
A elite que pensa
Muito interessante a entrevista do Cosac, para a Revista Piauí, em vídeo.
Um rico que pensa. São, aqui e ali, casos raros de uma das elites mais burras e despreparadas do mundo.
O que ele fala do Rio de Janeiro é de uma sinceridade atroz: "O Rio é bom para Fernanda Montenegro, Fernanda Torres, Carlinhos Brown, este povo que faz sucesso. Para a maioria da população é um horror". Cosac diz que os livros brasileiros são feios e mal editados. Na primeira versão da Cosac perdeu R$ 100 milhões. Nesta versão espera não perderdinheiro. Diz que vai editar livros dos séculos XVII, XVIII e XIX com universidades. Mais uma ideia que sonhei e que alguém vai ter grana para fazer. Ótimo.
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