
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Lira Neto, no seu "UFC. Biografia de uma Universidade" — ainda inédito, mas do qual tive o privilégio de ler trechos — conta a história do encontro em Paris entre Martins Filho e Antônio Bandeira:
"Quando Antônio Bandeira abriu a porta do pequeno apartamento em Paris, ficou evidente o estado de penúria no qual o pintor cearense, aos 27 anos, vivia na capital francesa. 'O bem fungível mais importante que o artista possuía, naquele momento, era uma garrafa de cachaça', reparou Martins Filho, então em giro pela Europa, acompanhado de alunos da Faculdade de Direito para visitas a universidades do Velho Mundo. Sensibilizado pela situação do conterrâneo, Martins o convidou a integrar-se à comitiva, que estava com a agenda marcada para uma ida à Sorbonne. Como participante do grupo, Bandeira teria direito às diárias previstas no orçamento da viagem".
Estou contando esse pequeno spoiler para juntar duas obras que certamente se tornarão clássicos culturais no hoje pouco eficaz, do ponto de vista da consagração, campo de bens simbólicos cearenses.
O filme de Joe Pimentel, "Bandeira. O Poeta das Cores", e o já citado "UFC. Biografia de uma Universidade" são obras definitivas. Captam dois aspectos extraordinários da nossa cultura: um pintor magistral e a universidade do povo cearense. Isso me comove profundamente. Como diria Drummond: "Como o diabo". E me comove ainda mais saber que esses dois clássicos foram criados por dois amigos talentosíssimos.
Do livro de Lira ainda não posso falar em sua totalidade, mas o filme de Joe Pimentel sobre Bandeira estreou na quinta-feira, 10, nas telas do Cinema do Dragão. Portanto, é urgente apresentar — e festejar.
"O Poeta das Cores" é uma obra em que cada pincelada de Joe revela o nascimento e o precoce amadurecimento de um artista que se tornou, tanto do ponto de vista da consagração artística quanto do valor de mercado (coisas bem distintas), um dos maiores do Brasil em todos os tempos. Não é pouca coisa.
Joe Pimentel parte da força que lhe deu Francisco Bandeira, sobrinho do artista, e desenha com sensibilidade e domínio da linguagem cinematográfica os passos do pintor em Paris. O diretor evita com maestria a tentação de fazer uma obra apenas de sacadas jornalísticas e depoimentos. Ele constrói, com cada detalhe, o painel dialético que foi Antônio Bandeira — um preto elegante, vindo de um país periférico, tentando furar o cerco do domínio internacional francês nas artes plásticas, e dando um salto inventivo inimaginável.
Neste caso, é preciso entender de onde Bandeira saiu e até onde chegou. Joe utiliza a semelhança incrível entre sobrinho e tio para reproduzir os passos do artista, principalmente durante sua primeira migração para a França — onde ele aprimorou sua técnica e deu o salto do figurativo ao abstracionismo lírico que o tornaria um inovador real para seu tempo.
Quando estava pensando na construção e nos conceitos norteadores do Museu de Arte Contemporânea do Dragão do Mar (MAC), conversei por muitas horas com diversos curadores, pensadores, marchands, artistas. Dodora, Agnaldo e Max Perlingeiro foram fundamentais — ao lado do grande sábio Paulo Herkenhoff, que depois criaria o Museu de Arte do Rio (MAR) e foi curador adjunto do departamento de pintura e escultura do MoMA, em Nova York.
Um dia, depois de uma longa conversa sobre os rumos do acervo, meu xará me deu um tapinha no ombro e disse: "Concentre-se nos grandes. Você tem Bandeira, o maior internacionalmente. Quem no Brasil pode chegar onde ele chegou? E tem mais: Aldemir, Cela, Sérvulo, Chico da Silva, Leonilson... Tá de bom tamanho."
Foi aí que decidi montar o acervo do Estado que temos hoje.
O campo artístico tem caminhos estranhos de depuração até a consagração. Às vezes longos, sinuosos e injustos — como no caso clássico de Van Gogh — mas sempre acabam por fazer algumas escolhas de grande sabedoria.
O cearense charmoso das noites de Saint-Germain-des-Prés foi ungido, após morto, como o artista mais valorizado do Brasil naquele período. Um quadro de Bandeira pode valer de R$ 3 milhões a R$ 4 milhões. Estamos falando de algo que vale cinco apartamentos. Então, dá para entender tanta briga, confusão, ameaças de denúncia de falsificações etc.
A guerra do mercado mais espantoso da cultura não é brincadeira para amadores.
Alguns anos atrás, o tríptico "Sol sobre Paisagem", de Antônio Bandeira, foi vendido num leilão da Bolsa de Arte de São Paulo por R$ 3,5 milhões. Na época (mais de 20 anos atrás), era a maior cotação em dólar já atingida por um artista brasileiro.
Bandeira pintou esse tríptico em 1966, um ano antes de morrer. No total, produziu entre 20 e 30 telas a óleo, o que ajuda a explicar o valor altíssimo de sua obra hoje.
Joe Pimentel consegue captar, no filme, esse processo de lutas simbólicas até a consagração. No depoimento de Maria Bonomi, ela oferece uma explicação central:
"Quando ele foi para Paris, em 1946, aqui ainda se fazia figura e mais figura, se pensava como sair da abstração. Ele já foi além disso. Já fazia um salto qualitativo, já liberto da representação, buscando uma essência pictórica acima disso. O que ele fez lá adiantou o relógio do Brasil, até incomodou outros artistas porque ele estava bem adiante. Ele deu um salto mantendo toda a poética do Ceará, dos cearenses que tinha dentro dele, diante da Cidade Luz".
Além do sobrinho, Joe usou a leitura de poesias de autoria do próprio Bandeira. Um recurso usado com serenidade e sem exageros — encaixando-se bem no conjunto.
A direção de Joe Pimentel equilibra informações técnicas, percepções afetivas e relatos históricos em uma narrativa documental sóbria, e com muita excelência, em 80 minutos de filme. É possível perceber que Joe partiu de muito pouco — alguns registros raros das idas e vindas do artista à sua terra natal, filmagens e fotografias de sua participação na Segunda Bienal Internacional de Arte de São Paulo (1953) — e construiu um filme gostoso de assistir, instigante, um verdadeiro biscoito fino.
O paralelo necessário entre Fortaleza e Paris obriga o diretor a pensar em um segundo filme, sobre a Sociedade Cearense de Artes Plástica (SCAP) — um tema central no campo cultural cearense, pois ainda revela muita coisa mal compreendida.
Enfim, é impossível — a partir de agora — pensar a nossa cultura sem assistir a esse filme.
Alencar, Capistrano, Bandeira, Belchior... são alguns dos nossos criadores pericêntricos que conseguiram, à sua maneira, ultrapassar os limites das fragilidades de um campo cultural periférico, do ponto de vista da consagração. Como e por quê — that's the question.
A ver, obrigatoriamente, no Cinema do Dragão: a obra de Joe Pimentel e equipe.
Os sabores sutis e sofisticados do Muá Tuá Bistrô
Voltando da elétrica e divertida palestra de Durval Muniz sobre a invenção do Nordeste — promovida pelo Colégio de Estudos Avançados da UFC — resolvi conhecer o novo bistrô Muá Tuá (Rua Torres Câmara, 600 — numa vila de casas, o bistrô é na casa 21).
Foi um espanto.
Comecei por ostras frescas com um molho *citron* alucinante. Depois, fui de diversas entradas bem resolvidas e terminei com um sanduíche de atum "pas comme les autres".
Resolvi fuçar no currículo da chef — e vejam só: Georgia Santiago, começou trabalhando em bistrôs franceses até que, em 2015, iniciou longas jornadas de trabalho em restaurantes estrelados. Passou pelo "Au Crocodile", em Strasbourg, foi ao Japão para estágios em Tóquio, e esteve também no triplamente estrelado "Maaemo", em Oslo, Noruega.
Em 2016, escolheu Paris para aprofundar sua carreira e permaneceu dois anos no "Septime", 22 vezes considerado o melhor restaurante do mundo. De volta ao Brasil, passou pelo "Oro", no Rio de Janeiro, a convite do chef Felipe Bronze.
Georgia entrega essa experiência em cada detalhe.
O Muá Tuá tem uma sutileza nos sabores e uma sofisticação raríssima na gastronomia cearense.
O estabelecimento funciona segunda-feira e de quinta-feira a sábado, das 18h às 23 horas. Mais informações no Instagram @muatuabistrot
Antônio Bandeira - O Poeta das Cores
Em cartaz no Cinema do Dragão (Rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema)
Classificação indicativa: 12 anos
80 minutos
Informações sobre salas e horários: no Instagram @cinemadodragao
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