
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Quem quiser entender o campo periférico dos bens simbólicos do Brasil, o nosso campo do Ceará (periferia da periferia ou campo sub-regional) e os mecanismos de dominação do poder simbólico, tem que acompanhar alguns indicadores de alguns campos: música, esportes (futebol predominante), televisão (streaming incluso) e cinema.
Cada um destes campos tem regras, mecanismos de legitimação e consagração que produzem o sistema simbólico brasileiro, que diz respeito a um conjunto de forças, poderes e disputas.
Na música, um campo por excelência dominante, os produtos que são colocados na prateleira e os produtos que adquirem visibilidade passam por processos invisíveis de manipulação que um leigo acaba por não entender como foram selecionados pelos agentes intermediadores e caem na aprovação popular.
Os tradicionais métodos de pesquisa empregados nas pesquisas em ciências sociais passam ao largo da complexidade das disputas de legitimidade.
As pesquisas feitas pelos agentes do mercado costumam apontar os resultados de sucesso, grana, reproduções, mas não enxergam nada da distinção artística.
Mas estes dois tipos de observação dos campos podem ser estruturalmente homólogos, como dizia Pierre Bourdieu, o único de fato que construiu uma teoria do conhecimento sobre o campo cultural. Quando observamos separadamente estas duas maneiras de compreender o campo musical, verificamos que existe uma correspondência entre o espaço das posições e o das disposições. Ou, ao contrário, tudo se passa como se os indivíduos tivessem escolhido as melhores posições para que eles expressem suas disposições, sua vocação, seu gosto, seus dons.
Se observarmos a pesquisa Quest, que perguntou aos brasileiros qual o tipo de música ele prefere, e cruzarmos com suas posições políticas, o resultado é límpido: a música sertaneja aparece como a mais ouvida por 30% dos bolsonaristas, 25% daqueles que não se consideram bolsonaristas, mas estão à direita, e por 28% dos lulistas/petistas, 21% dos que não se consideram lulistas/petistas, mas que estão à esquerda, e por 28% dos que não possuem posicionamento.
Se o gênero sertanejo parece unir os opostos políticos da sociedade brasileira, o segundo tipo mais ouvido já indica diferenças. A música gospel, ou religiosa, é a escolhida por 23% dos bolsonaristas, enquanto entre os lulistas/petistas alcança apenas 15%.
Já no caso do samba e do forró, 27% dos lulistas/petistas colocam os gêneros como favoritos, à frente dos 18% apresentados pelos bolsonaristas.
Se analisarmos estes resultados do ponto de vista sócio-antropológico, reconhecemos, então:
Se analisarmos os 50 maiores em execução pela plataforma Spotify não será muito diferente.
Predominância de sertanejos e gospel e uma penetração parcial do forró (aliás, do forró "sertanejado", coisa de difícil definição).
De cara, um grande furo na pesquisa Quest. Mistura sertanejo com funk e correlatos, como o rap e o trap. O funk, o arrocha, o rap e o trap podem ser caracterizados como gêneros musicais urbanos que, hoje, representam o "pop brasileiro", ou "abrasileirado" - já que rap e trap nascem nos Estados Unidos. De todo modo, a música das periferias das grandes cidades tem máquinas próprias, artistas e processos de seleção para consagração bem diferentes entre si.
As disposições, máquinas de agenciamento, seleção e consagração de cada um dos gêneros e as posições, lugares ocupados e disputados pelos artistas, mostram um País que observamos na política e na vida social.
Corrigindo a Quest, teríamos:
É possível verificar que há, às vezes, uma relação de discordância entre posições e disposições, mas como Pierre Bourdieu sempre explica, este é o princípio de inovações que coloca artistas em certos princípios de desajustes.
Exemplos quanto às disposições: ah, como pode um entregador de ifood gostar do universo agro? Simples. Ele almeja aquele papo de carrões, motéis, bebedeira, piscinas e dinheiro jorrando.
E quanto às posições: como pode um sucesso como Gil e Caetano não aparecer nestes universos?
Eles se situam em campos minoritários, hoje. Nenhum destes artistas que nós, classe média intelectualizada, amamos, aparece na lista dos cem mais executados em 2025 pelo Spotify.
Duas notas finais: ao analisarmos a lista de 2025 do Spotify verificamos um só cearense: Nattanzinho, de Sobral.
Na lista de hoje dos mais executados nos primeiros lugares temos:
Em síntese: quero mencionar este fenômeno que, de modo geral, é ignorado pelo discurso dos analistas políticos. Se você cruzar estes espaços estruturados, campo cultural, campo econômico, campo político, você desvenda o Brasil de hoje.
O que mostra que o discurso econômico que inunda as interpretações é uma das possibilidades de observação. Falta entender a interiorização do social e a exteriorização do cultural. Parafraseando Belchior: "Viver é melhor que sonhar", também na hora de enxergar o País.
Meus bens, meus zens, meus males.
1. Duas notícias da segurança pública merecem reflexão
Na coluna do Jocélio Leal no O POVO de domingo, 13, um comentário me impressionou. Temos 80 coronéis da política do Ceará enquanto São Paulo tem 30 coronéis. Trata-se da "República dos Coronéis".
E para não dizer que não falei de flores: a ação de desmantelamento das facções do Pirambu com desmonte do esquema financeiro, prisão dos principais donos da grana e testas de ferro, foi um passo sério, competente e transformador para a construção de uma política de segurança pública de um governo de esquerda. Alguém acha que a fortuna gasta com os coronéis tem alguma coisa a ver com bons resultados na inteligência?
2. Izolda e Veveu em Stanford
A ex-governadora do Ceará, Izolda Cela, e seu marido, o ex-prefeito de Sobral, Veveu Arruda, estão numa temporada em Stanford pesquisando educação. Izolda, dizem seus próximos, saiu magoada de todo processo recente onde, como governadora, apoiou todo um processo de transformação de sua disputa numa causa feminista para a seguir ser colocada de lado. Sei que é um tema complexo, mas, como adoro a complexidade… Estou lendo o livro "Contra o feminismo branco" (Editora Intrínseca), da paquistanesa Rafia Zakaria.
Zakaria mostra que o que ela chama "feminismo branco" são as práticas e discursos formados por mulheres de classe média alta que se negam a considerar o papel que a branquitude e seus privilégios desempenham a favor delas - e, ao desprezar ou naturalizar estes privilégios, servem muitas vezes à renovação do patriarcado, com novas máscaras.
A forma como Izolda foi usada neste processo foi uma dura lição para ela, que é uma mulher sensível e inteligente.
3. A volta da TV O POVO
No meio de tantas notícias ruins da comunicação, uma notícia me deixou zen na vida. Me lembrei dos dias intensos que passei com Demócrito Dummar, pensando no conteúdo, botando a estação no ar, lutando pelo seu sucesso com uma equipe inesquecível. Quem um dia estudar a história do Grupo de Comunicação O POVO seriamente vai ver que ele teve quatro fases principais: 1. Demócrito Rocha; 2. Paulo e Albaniza Sarasate; 3. Demócrito Dummar; e 4. Luciana Dummar.
Demócrito foi o gênio de reposicionamento político do jornal. Luciana consolidou este padrão fora da linha do conservadorismo da grande mídia brasileira. Viva a TV O POVO (48.2)! Um oásis na mediocridade quase geral da televisão cearense (estou criticando os projetos empresariais, não os profissionais, tem gente ótima fazendo coisa ruim para sobreviver).
4. Secultfor/Helena Barbosa e Secult/Luisa Cela
Mandaram bem. Aniversário de Fortaleza e Bienal Internacional do Livro do Ceará. Fico feliz que a Bienal que criei (se chamava nas suas três primeiras realizações Feira Brasileira do Livro, depois mudaram para Bienal Internacional - que de internacional não tem nada) mantenha seu perfil inicial de um grande sucesso popular.
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