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O homem não existe
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

O homem não existe

Livro investiga a masculinidade dos homens de papel
Ligia Gonçalves Diniz é professora da UFMG (Foto: DIVULGAÇÃO/COMPANHIA DAS LETRAS)
Foto: DIVULGAÇÃO/COMPANHIA DAS LETRAS Ligia Gonçalves Diniz é professora da UFMG

Quando criou, nos anos 1970, uma de suas mais polêmicas frases de impacto — "a mulher não existe" — o psicanalista francês Jacques Lacan queria dizer que a mulher, diferente do homem e seu gozo fálico, não poderia ser definida por uma única forma de gozo. A escritora, crítica literária e professora de literatura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ligia Gonçalves Diniz, brincou com essas palavras no título de seu livro "O Homem Não Existe: Masculinidade, desejo e ficção" (Editora Zahar, 2024).

O livro é do ano passado, mas só agora me caiu nas mãos — leiam a frase sem segundas intenções. E que livro bem escrito e prazeroso de ler!

O tema é complexo. Lacan comprou uma de suas brigas clássicas em defesa de Freud. Como a própria Ligia Diniz interpreta, a frase de Lacan pode ser lida como a liberdade feminina de ter muitas outras formas de gozo.

As feministas, no entanto, jamais perdoaram Freud e Lacan depois da teoria da inveja do falo.

Ligia Diniz investiga a marca da unidade fálica a partir da ficção, que é predominantemente masculina. Como ela mesma explica, o projeto tem dois objetivos: primeiro, mostrar o homem como uma presença misteriosa e insondável para a mulher, tanto quanto o contrário; segundo, propor uma brincadeira com a análise da masculinidade a partir da ficção — ou seja, de personagens inventados.

Na obra, Diniz defende inclusive a leitura de livros com personagens (ou até autores) machistas e misóginos como uma rara forma de entrar na pele de sujeitos como esses.

Para falar do assunto, a autora parte de exemplos clássicos da literatura mundial: o argelino Camus, o personagem Zuckerman (alter-ego do judeu-americano Philip Roth ao longo de uma série de livros), o capitão Ahab de "Moby Dick", e o protagonista de "Um, Nenhum e Cem Mil", do italiano Luigi Pirandello.

Ligia Diniz dedica quase um terço do livro ao pênis. E foi mesmo generosa com os homens no sentido de reconhecer o quanto é problemática a ideia de colocar toda a responsabilidade da vida sexual e afetiva sobre um órgão tão frágil.

Ela admite que projetou muitas coisas no livro — mesmo porque, segundo ela, não teve como evitar.

A possibilidade de ficção 

Uma das questões que mais me interessou na leitura — já que no momento estou às voltas com o tema de como a arte responde e produz a própria realidade do campo cultural — foi a possibilidade de entrar na ficção e viver outra realidade.

Para se envolver com qualquer obra cultural, é preciso algum nível de identificação, defende a autora. "Mas, mais interessante do que a identificação, é a possibilidade de viver aquilo com o que você não se identifica. Gosto de pensar que não sou uma pessoa misógina ou machista. Claro que há elementos com os quais me identifico, que me possibilitam seguir a leitura e sentir que há algo compartilhado. Mas mais interessante é a possibilidade de viver o outro — esses atos e experiências que você não viveu ou que são fisiologicamente impossíveis. Se um livro tem um personagem misógino, machista ou racista, o que diferencia sua legibilidade não é o grau de defeito de caráter, e sim o quanto esse personagem é bem construído", argumenta Diniz.

Claro que a parte mais polêmica do livro é o debate sobre o pênis.

Em entrevistas de divulgação, Ligia Diniz contou que, para ela, "é tão estranho ter um pênis quanto ser um pássaro" — uma vivência corporal muito alheia à sua, como mulher cis. "Mas começo com essa discussão sobre o pênis por conta da centralidade do tema desde sempre. Falo num capítulo sobre Gilgamesh, herói de uma epopeia suméria anterior aos épicos homéricos, onde o pênis é evocado o tempo todo como símbolo de coragem e força — com todas as qualidades que as pessoas associam à virilidade. Quando comecei a pensar no livro, estava lendo a saga do Zuckerman, personagem que é uma espécie de alter-ego do Philip Roth.

E estava obcecada com o quinto livro, "O Avesso da Vida", que discute a experiência da ficção, de se projetar em diferentes possibilidades de vida — tudo a partir de uma 'brochada'. É um personagem que precisa escolher entre tomar um remédio para o coração, que o deixa impotente, ou se submeter a uma cirurgia arriscada para recuperar a saúde sexual. Toda uma discussão sobre se vale a pena viver sem sentir tesão. Consigo me identificar com a relação entre produção intelectual e desejo sexual, mas evidentemente não com uma 'brochada'. O tema do pênis foi se desdobrando em diferentes facetas, virou um terço do livro — e poderia ter ficado até maior.

É algo de que não tenho nenhuma inveja, porque me parece muito problemático — muito frágil — uma pessoa colocar uma parte tão importante de si num único órgão. Um órgão que responde quando não é chamado e, às vezes, é chamado e não se apresenta".

Livro investiga masculinidade

Enfim, o livro abre possibilidades ricas para tratar o tema da masculinidade em toda a sua pluralidade.

Confesso que, às vezes, tenho certa preguiça para análises literárias. Elas tendem a ser muito "viajandonas" para um antropólogo afeito ao campo. Mas é inegável que, quando feitas com talento — como o de Ligia Diniz — e fugindo do drama da sociologia ou mesmo da psicanálise, que costumam tratar o homem e a masculinidade por uma única dimensão, elas funcionam bem.

Em sociedades onde os homens vivem experiências socializadoras heterogêneas, cada um é portador de múltiplas disposições. E, sob vários aspectos, a ficção tem a capacidade de enxergar coisas que nenhuma especialidade consegue ver sozinha.

Escrever sobre temas tão difíceis com humor não é fácil. Qualquer pisada em falso pode provocar uma explosão de ódio e ressentimento. E Lígia Diniz tem erudição sem pedantismo — além da vontade de pensar muitas vezes contra o vento dominante.

Robert Boyers, escrevendo sobre George Steiner, disse que a tarefa mais difícil nesses casos é ficar sempre alerta à "distinção de Wittgenstein entre todas as trivialidades que você pode falar e todas as coisas essenciais que não pode".

Em "O Homem Não Existe", Ligia Diniz consegue caminhar nessa tensão — sem nunca escorregar na frágil linha que as separa.

Ah, não poderia esquecer: Ligia Diniz foi a autora da crítica dura, mas pertinente, ao segundo romance de Itamar Vieira Junior, "Salvar o Fogo" (Todavia, 2023). A crítica saiu na "Revista 451" — e Itamar respondeu cuspindo fogo contra a revista e a autora.

 

Lira Neto é escritor e jornalista
Lira Neto é escritor e jornalista

OS BISCOITOS FINOS DE LIRA E OSWALD DE ANDRADE

O Colégio de Estudos Avançados da Universidade Federal Ceará (UFC) vai lançar o "biscoito fino" de Lira Neto: a biografia de Oswald de Andrade. O evento será no Auditório Professor Martins Filho, na quinta-feira, 15, às 18h30min. O auditório é sediado na reitoria da UFC, no bairro Benfica.

Vamos ouvir Lira, conversar sobre Oswald e trocar ideias — quem as tiver em abundância. Oswald é autor da famosa expressão: "A massa ainda comerá o biscoito fino que eu fabrico".

Na sexta-feira, 16, à noite, Lira prossegue a conversa no Teatro Nadir Papi Sabóia, unidade do Colégio Farias Brito, localizado no bairro Varjota.

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