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O velho cronista
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

O velho cronista

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Tipo Crônica

O velho cronista se angustiava com a falta de leitores, não especificamente de sua própria "obra literária", como sempre dizia, pomposo, dando uma ênfase quase religiosa ao termo; mas se ressentia da falta de leitores de maneira geral. Quando tocava no assunto - e essa lamentação cada dia mais fazia parte de suas conversas -, citava as últimas estatísticas: destilava dados precisos para mostrar ao interlocutor que sua queixa não se tratava de uma visão "mesquinha", personalista - apenas lamúrias de um escritor gasto; na verdade não queria justificar seu fracasso como "escritor de província"; termo que detestava, combatia - diria até que perdia a calma quando o escutava de algum desavisado.

Ele já quase cedeu à tentação de escrever um romance, desses da moda, com ações confusas que se passam impreterivelmente num país estrangeiro. Um famoso escritor de sucesso, desses que são cativos em bienais e feiras de livros Brasil afora, bem que falou numa entrevista: "Quem insistir em escrever poemas, crônicas e contos estará fadado ao fracasso". Ele ficou confuso - triste mas aliviado, sentindo-se leve até; afinal do "conselho literário" do exitoso colega entendera que o... - procurou os termos corretos, mais amenos, para não se auto melindrar - ...verdadeiro culpado pela sua pouca fama era apenas o "gênero" que ingenuamente escolhera para si.

E nesse misto de decepção e alívio partiu para organizar uma "nova" carreira literária - desocupou a estante principal povoada de poetas, cronista e contistas e, sem perder tempo, se dirigiu à megalivraria do shopping para adquirir o maior número de romances de última geração, de escrevinhadores nacionais e estrangeiros; pacientemente organizou um intrincado mapa de leitura que o faria dar conta, em poucos meses, das novidades literárias que ele mesmo andara criticando com afinco nas últimas décadas.

E cada vez que descobria a idade dos escritores entrava momentaneamente em depressão, facilmente seriam seus netos: alguns imberbes ainda; moçoilas com rostos juvenis, que, com olhos firmes de pura arrogância, lhe olhavam de cada "orelha" desdobrada. Empanturrou-se de dezenas de livrões de quase quinhentas páginas, com seus títulos longos (como estava na moda). Mas, em certa madrugada, flagrou-se pensando que se empilhasse todos os seus magros volumes de poemas, crônica e contos escritos em quase 50 anos não daria um tomo robusto daqueles; e inevitavelmente pensou: "O que esses jovens têm tanto para dizer, se mal começaram a viver!?"

Encheu cadernos com infinitas ideias para o seu romance, alinhavou episódios de vida, desde a infância feliz, passando pela conturbada adolescência, chegando à quase senilidade dos dias de hoje e os misturou aleatoriamente, quando tomou então consciência de que não teria mais tempo para escrever um monumento daqueles, que lhe faltava força, física e mental. Sempre ia dormir angustiado e sonhava com enredos mirabolantes, sem pés nem cabeças: os personagens saiam dos seus alfarrábios recém-escritos e criavam vida, indo eles mesmos escrever a obra terminal do velho cronista, que - constatava desolado quando acordava - era ele próprio.

Certa madrugada de intensa angústia - até pensara em suicídio - dormiu por cima da escrivaninha, com a cara enfiada nos numerosos manuscritos; logo desatou a sonhar cenas tão vívidas que na manhã seguinte mal acreditava que realmente havia sido um pesadelo: seus personagens, desta vez enfurecidos, desataram a rasgar os livros na sua estante das novidades, não ficando um só volume com páginas intactas - e o mais incrível: no último quarto do caderno de pautas deixaram pronto um enredo de tal forma intrincado, que - ele teve convicção - fora escrito pelos seus personagens, psicografado pelos mil diabinhos que povoavam desde a infância os seus sonhos; um enredo tão monstruosamente complicado que com certeza deixaria a crítica literária ocupada por um século inteiro.

O ex-cronista (ex-poeta e ex-contista), e quase novo romancista, pouco tempo depois sofreu um derrame, sobrevivendo ainda alguns meses, entre dores e delírios, antes de ser cremado rapidamente pela família, que parecia temer a reversão do quadro. Seus livros - os antigos, já que os novos estavam em pedaços - foram vendidos a um sebo; e seu último caderno de manuscritos foi enfiado num saco de lixo, levado ao fundo do quintal, onde alimentou uma belíssima fogueira.

 

Foto do Pedro Salgueiro

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