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Palhaço ou uma autobiografia com giz
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Palhaço ou uma autobiografia com giz

O minúsculo artista vivia apenas nos sonhos pelas frestas da porta, de onde invejava à distância o mugido dos bezerrinhos, apurando ouvidos no chocalho das cabras, afinando olhos no zunido do vento...
Tipo Crônica

Desde sempre o pequenino poeta recitou os versos de seu tímido pai na sala para as visitas; nasceu esteta, por herança, para orgulho dos mais velhos e desespero da multidão de primos, que nada sabia de artes, a não ser jogar bila, pular cerca, rasgar bola, caçar passarinho, nadar nas grotas, roubar frutas, subir em cangalha por trás sem levar coice dos jumentos... O minúsculo artista vivia apenas nos sonhos pelas frestas da porta, de onde invejava à distância o mugido dos bezerrinhos, apurando ouvidos no chocalho das cabras, afinando olhos no zunido do vento...

Um dia o precoce menestrel saiu no meio do mundo escondido na carroceria do caminhão de circo, embolado na empanada; foi cumprir seus pesadelos de distâncias, mas no sonho de um dia retornar fantasiado de trapezista, malabarista.

Apareceu na cidade um palhaço com um ouvido imundo.

Vaga pelas ruas com a impunidade que apenas os saltimbancos tentam demonstrar. Teve a petulância de, mal chegado, negar umas linhas para o nosso prestigioso jornal: quando muitos aqui venderiam a mãe, ou a mão. Diz ter poucas ideias por ano, e que não sabe a hora em que elas vêm ou vão. Fez sua casa no prédio antigo da cadeia — paredes robustas, chão áspero; como ornamentos somente dois armadores e a rede grossa e a mesa gasta onde lapida suas preces. Quando a ideia vem, quando vem, puxa o tamborete, afia a faca, apruma o esmeril entre os joelhos, e sua que sua. Da pouca frase resta o cascalho que joga pelas ruas nas raras manhãs em que se arrisca a sair. Deixar a toca só à tardinha, aí não mais de rosto limpo — o sorriso agora pintado na face: a boca fala, o ouvido escuta. Tudo é impunidade nestes gestos loucos: puxa a língua-de-sogra, enrijece a gravata, dá banana para o secretário de governo — tudo pode no final da tarde, a máscara lhe impede o pranto.

Anda pela cidade um médico insano. Diz que veio curar as doenças do mundo. Montou consultório na praça, cobra pouco, e já possui uma freguesia respeitável. Durante a manhã rega o jardim, poda os galhos do flamboyant — espalha as rosas frescas pelo chão, que somente as apanhará murchas: quando então realiza o ritual das três da tarde. Respira fundo; veste o macacão; põe as luvas, o nariz de cera, a peruca; pega o velocípede e sai por aí, fingindo a alegria de sempre.

Corre pelas calçadas um homem doido. Procura com insistência as praças, esmaga as flores, espanta o casal de namorados, consola dois velhos que conversam em silêncio. Atravessa as ruas em disparada, desmantelando o trânsito; mas quando o observamos atentos, assustado puxa um caco de espelho, que vira sorrindo em nossa direção.

Desliza pela noite um sorriso insano. Ouve coisas, distorce loisas. E nunca olha para frente...

Foto do Pedro Salgueiro

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