Logo O POVO+
"Quando eu não tinha o olhar lacrimoso"
Foto de Pedro Salgueiro
clique para exibir bio do colunista

Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

"Quando eu não tinha o olhar lacrimoso"

.
Tipo Crônica
Longarinas: a velha ponte dos ingleses (Foto: Tripadvisor/Divulgação)
Foto: Tripadvisor/Divulgação Longarinas: a velha ponte dos ingleses

"Ao chegar do interior, inocente, puro e besta", fui morar na Cidade 2000, que no comecinho da década de 1980 era um fim de mundo. Depois de primeiras excursões até a Praia do Futuro e de desbravar a Santos Dumont, acompanhei um colega lá pras bandas da Praia de Iracema, onde (literalmente) me maravilhei com aquele imenso e verde "marazuuuul".

Ali, engracei-me de uma menina que me levou a conhecer um recanto onde, após atravessar uma fresta de parede de alvenaria, vislumbrávamos uma longa plataforma, irregular, cheia de falhas, por onde minavam (feito gêiseres) águas e vapores do mar bravio que rugia logo embaixo (sempre tentaram, em vão, vedar aquela construção estranha com grades e tapumes de madeira como se fosse um lugar de perdições) dos que tranquilamente se sentavam fumando, namorando, pescando, tocando violão ou simplesmente mirando aquele vazio repleto de mar.

Confesso que senti, e sinto até hoje, medo daquelas águas nos tentando engolir por baixo, mas os desafios e prazeres da mocidade me atraíam aos fins de semana para lá, onde vagava para desenfastiar dos estudos ou matar "nas águas fundas do mar" a saudade danada do interior. Com o tempo desistiram de proibir os penetras, e o terraço virou uma feira livre de jovens entre fumaças e vapores a cantar loas ao sol se pondo; lá não namorei por pudor, não fumei por medo, não cantei ao violão por timidez... mas de tanto insistir calado por ali, conheci uma menina magricela, quase transparente (soltinha dentro de um gasto e claro vestido de hippie) que me tomou de amizade e, numa bela tarde nublada, me convidou para conhecer sua quitinete ali ao lado, quase na avenida, mas com uma brechinha de janela avistando o espigão da velha ponte sobre o mar.

Às tardes de sábado, manhãs de domingo, principalmente às noites, vaguei por ali, ouvindo os discos do Pessoal do Ceará, lendo marejados livros de Fante, Leminski e outras cantatas literárias. Fiz amizades com vizinhos, amigos que às vezes pernoitavam, porém na maioria das vezes ela se trancava no único quarto, me cedendo o sofá da sala com seus mil cheiros.

Não me esqueço da noite em que o vigia de rua me fez tremer com a história de uma dama de vestido longo que adentrava a antiga ponte e não mais voltava; já com o dia claro, ela permanecia por entre as brumas lá no fundo da plataforma. Mesmo rindo da lorota, me via a esguelhar os olhos na direção do vão de cimento e ferro, com tanto medo que um dia imaginei uma tênue mancha branca, esvoaçante, de um lenço que a brisa levasse mar adentro.

Esfreguei os olhos, larguei o livro, e corri para chamar Marisa, queria que ela me tirasse aquela ridícula dúvida de vigília ou sonho que vislumbrei pelo cantinho da janela. Abri a porta do quarto... a cama vazia, o guarda-roupas ainda aberto, apenas o vento levantava, tal uma vela de jangada em alto mar, a ponta do lençol sobre a cama.

Peguei a mochila, catei meu caderno de poemas, e deslizei escada abaixo, sem coragem sequer pra olhar de novo para a triste Ponte dos Ingleses.

Foto do Pedro Salgueiro

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?