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Sonho Azul
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Sonho Azul

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Tipo Crônica

Uma vez, no meu primeiro ano de estudante em Fortaleza, cismei de voltar de férias à minha cidade natal de trem. Ainda serpenteia na memória o sacolejar interrompido por apitos, gritos e pedras naquela lagarta-de-ferro que teria destino final Teresina. No começo dos anos 1980 ainda havia um expresso-de-aço belamente chamado de Sonho Azul, muito embora não existisse mais o ar-condicionado nem luxo algum (mas ouvíamos falar que já fora bastante confortável: "Um restaurante dentro do trem, com serviços de garçons, além das poltronas reclináveis e acolchoadas, ar-condicionado, sistema de som, banheiros e muitas outras opções que tornavam a viagem de longa distância mais agradável possível", explica o pesquisador Hamilton Pereira, ex-funcionário da Rede Ferroviária federal S/A e coautor do livro "Estradas de Ferro no Ceará").

Meu pai desaprovou essa ideia estranha, pois além do desconforto que ele muito havia experimentado não havia estação em nossa pequena Tamboril, eu teria que descer no distrito de Sucesso e esperar um bom tempo por um ônibus vindo de Crateús para, enfim, chegar ao meu destino final, e talvez gastasse até mais, ponderava ele, malgrado os perigos do caminho.

O pouco dinheiro e as muitas histórias de amigos me impulsionaram a juntar as moedas e comprar antecipadamente, sem avisar aos meus, a passagem na Estação João Felipe, onde eu, alguns dias depois, lá estaria pela boquinha da noite (ansioso com minha velha mochila estufada de roupas e livros) tremendo de medo aguardando o assombroso monstro-de-lata.

A singela aventura se mostrou surpreendente em tudo, diferente do conforto dos ônibus das empresas Rápido Crateús e Horizonte, que faziam as linhas regulares pros Sertões dos Inhamuns, a locomotiva era uma feira ambulante de passageiros e cargas, porque me parecia que todos levavam tralhas em excesso; só muito depois fui saber que a maioria vinha à capital fazer compras para seus pequenos comércios, o que (devido à quantidade e natureza das bagagens) tornava inviável um retorno por outros meios de transporte; alguns iniciavam suas vendas pelos vagões mesmo, ofereciam sem cerimônias seus variados produtos, até percebi algumas trocas e desavenças nas negociações. Não raro gritos e esbarrões: depois raras gargalhadas e longos períodos de silêncio.

Em algumas estações, uns desciam e outros subiam sem controle aparente, de repente alguém gritou que fulano não retornou, esquecendo suas mercadorias com um conterrâneo, tempos depois o perdido veio cambaleando de outro vagão, com trejeitos de bêbado: foi recepcionado com risos e empurrões... vez em quando todos se abaixavam e as pedras zuniam sobre nossas cabeças, os passageiros (que pareciam acostumados àquilo tudo) respondiam com palavrões aos meninos que faziam, na plataforma, algazarras e continuavam jogando pedras e nos xingando pelas janelas há muito sem vidros.

Desci tonto de sono e molhado de calor na pequena estação de Sucesso (alguns demônios substituíam as pedras por sacos de urina), um dedo de poeira no corpo, agarrado à mochila - tinham me avisado que não desgrudasse dela durante todo o trajeto - então corri inutilmente ao local onde o ônibus passaria apenas no meio da manhã, as labaredas do dia se anunciavam por cima da Serra Grande.

Cheguei à minha querida casa quase na hora do almoço, quando nos intervalos das broncas dos pais, contei aos irmãos os detalhes daquela gloriosa viagem: alguns bem reais, outros nem tanto, aproveitando para exagerar como nunca aquele meu primeiro heroísmo de adolescente.

Foto do Pedro Salgueiro

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