Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como
Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como
"É um bom tipo, o meu velho... Eu o estudo desde sempre" (Altemar Dutra)
O palco é um bar, na verdade um antigo restaurante de subúrbio. Não! Nem bar nem restaurante, mas um local amplo que pela sua decadência deixou de servir somente comida para famílias do bairro e passou a fornecer bebidas para escapar da falência.
É meu ambiente em pelo menos duas bocas de noite na semana, quando me enfastio de casa e saio para perambular pelos sebos e bares.
Tenho preferência pelas mesas que dão vista para a praça, assim vejo o palco da rua quando o tablado do bar-restaurante não se mostra interessante.
O velhinho chega invariavelmente pela rampa larga de cimento grosso, caminha com seu passinho curto de idoso, quase sem levantar os pés, como se se arrastasse num balé miudinho, quase tropeço-quase dança: vem com seu celular na mão esquerda, enrolado pelo fio longo do fone de ouvido. Senta-se à mesa de sempre (já o vi esperando atento uma boa meia hora um casal desocupar seu lugar cativo), por trás de uma coluna, de costas para a rua, e estabelece o já gasto ritual, afasta a cadeira para junto da mesa e começa a longa tarefa de desenrolar o emaranhado de fios do fone de ouvido do celular... não parece uma tarefa fácil, leva tempo, se atrapalha, dá vontade de ir lá ajudá-lo.
Depois chama o garçom e espera invariavelmente uma das duas garrafas marcadas com risco de caneta as doses já tomadas: dias de uísque, outros de Campari; porém já houve dia dos dois juntos, um do lado direito e o outro no meio, pois do lado esquerdo estará sempre o celular com seu fone atrapalhado. Nessas noites de duplas bebidas pede gelos separados, um no copo largo de uísque, outro na jarrinha - não macula nunca o uísque com o gelo do Campari; as rodelas de limão num pratinho.
Uma vez não concordou com a risca do marcador do uísque, levantou-se e foi rastejando ao balcão, onde explicou o local correto.
Às vezes se cansa da música e inicia um diálogo surdo consigo mesmo, gesticula assustando o garçom ou o vizinho de mesa, dá de cabeça e volta a sua mudez atenta no ritual da bebida, tantos cubos de gelo, uma dose precisa conferida com a unha do indicador.
O outro personagem é rápido e barulhento. Entra correndo e salta os degraus de dois em dois, três em três; quando os pais sentam na mesa do fundo ela já deu várias voltas e mexeu com os garçons. Os pais não ligam para suas traquinagens, como ele se fosse invisível ou achassem bem comum aquela eletricidade toda.
Quando para à mesa, ajeita com cuidado os brinquedos que os pais trouxeram. Volta a correr e parece circular num plano paralelo ao movimento do salão. Uma única vez parou à frente do velho e, também pela primeira vez, expiou atento; o senhorzinho, sempre fechado em seu mundo, sequer levantou a cabeça.
Não parecem fadado ao mesmo espaço físico, ao mesmo tempo; um existe apesar do outro (portanto, em planos espaciais e temporais diferentes, explica o diretor).
Apenas uma vez os dois se cruzaram.
Nessa noite a peça não arrancou aplauso da plateia; nem os garçons ficaram atentos aos movimentos dispersos. Pareciam dois bonecos de engonço manipulados por dois artistas diferentes (marionetes de dois mundos indiferentes). Um gasto ano que sai; um frenético novo que entra!
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