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Raymundo Netto, um dândi pós-moderno
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Raymundo Netto, um dândi pós-moderno

Tipo Crônica

Difícil alguém não ter ainda avistado, pelas ruas de nossa loirinha desmiolada pelo sol, esse sujeito branquelo, alto e desengonçado, com esvoaçante cabeleira branca, calças quase sempre de cores pouco convencionais, camisetas igualmente com estampas aberrantes, oclinhos de John Lennon a dar realce ao rosto estranho de nariz longo, adunco, e olhos esbugalhados. Não raro alguém o confunde com um excêntrico estrangeiro, um desses predadores que invadem nossa Fortaleza Voadora durante o ano inteiro atrás de nossos sol, sal e iracemas. Impunemente, o indiscreto caminhante palmilha rua a rua de nossa provinciana metrópole, bairro após bairro, distribuindo sorrisos e conversando com todos, de singelas donas de casas que varrem calçadas a belas e incautas moças namoradeiras; nosso don juan de subúrbio parece estar em mil lugares ao mesmo tempo.

Eu mesmo conheci esse singular personagem faz 20 anos, quando ia com meu amigo Sânzio de Azevedo para uma festa do livro em Aracati: mal nos sentamos no apertado transporte, apareceu - com seu sorriso cativante e a inseparável máquina fotográfica a tiracolo, já se apresentando como escritor recém-publicado - aquele que se tornaria um de meus melhores amigos dos últimos tempos: em poucos minutos o cabeludo resumiu sua vida inteirinha, falou do seu passado de aluno do Colégio Militar de Fortaleza, fisioterapeuta com clínica montada, quadrinista premiado, militante ecológico, também contou dos seus projetos presentes e futuros, deu opinião abalizada sobre dúzia e meia de assuntos, de música popular brasileira a culinária, de política a futebol, isso tudo sem parar um instante sequer, levantar-se, tirar fotos, perguntar alguma coisa ao motorista e, pasmem, até fazer amizade com o restante dos passageiros do lotação.

Daquele dia em diante nos tornamos amigos de convivência quase diária, além de dividirmos há quase 20 anos uma coluna alternada e quinzenal no jornal O POVO: aprendemos o novo ofício de cronistas na marra, eu - um casmurro ermitão que mal fala e que quase não sai de casa - tive (e tenho ainda) sérias dificuldades; já ele - conversador nato e andarilho de primeira linha, desses que ficam a vontade em qualquer local e com variadas classes sociais dialoga sem assombros - se sentiu em casa. Um dândi a flanar pela cidade, a colher assuntos com sua sensibilidade fina, sua simpatia ambulante, seu sorriso cativante e seus gestos largos. Em pouco tempo estava senhor da situação, zanzando de ônibus com José de Alencar, batendo papo com Milton Dias e até, acreditem, sentado na praça dos Leões com Rachel de Queiroz; enfim: costurando o presente e o passado de maneira leve e criativa - mas não se enganem com a espontaneidade do andarilho de óculos redondos e calças listradas, por trás dele se encontra um leitor voraz, um pesquisador cuidadoso e dedicado, amante dos nossos clássicos alencarinos - deles sabe quase tudo, e o que ainda não aprendeu descobre em demoradas ligações para o grande Sânzio de Azevedo, sempre tão disponível a todos que o procuram.

Ao talento literário soma-se uma vocação danada para editar livros, trabalho que faz com um amor só comparável ao que tem pelas duas filhas gêmeas e a Saulo, seu mais novo filhão, pelos quais demonstra um comovente amor paternal, orgulhoso e dedicado, desses que lhe marejam os olhos e lhe tremem a fala só de recordá-los.

A esse amigo raro, incansável editor, pai amoroso, escritor com talentos vários, desejamos que lhe venham mais décadas e décadas de crônicas, novelas, contos, quadrinhos, filhos e amores - mas que não deixe nunca de flanar por aí, chafurdando ruas, criando caminhos pelas nossas irregulares calçadas, que não deixe jamais de colocar suas velhas cadeiras nelas, que continue povoando brancas páginas com seus insólitos (e tão nossos) personagens e, principalmente, não deixe de nos brindar a todos - os muitos amigos e até os raríssimos inimigos - com sua presença marcante, criativa, amorosa e terna.

Foto do Pedro Salgueiro

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