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O fim do humano na Internet
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Regina Ribeiro é jornalista e leitora voraz de notícias e de livros. Já foi editora de Economia e de Cultura do O POVO. Atualmente é editora da Edições Demócrito Rocha

O fim do humano na Internet

Queria muito que Umberto Eco fosse vivo e pudesse escrever sobre os movimentos em torno da IA. Como ele, considero vital uma conversa entre humanos. No fim das contas, parece que ele foi o "Último Leitor".
Velocidade das transformações digitais empurram humanos para fora da Internet (Foto: Unsplash/@julientromeur)
Foto: Unsplash/@julientromeur Velocidade das transformações digitais empurram humanos para fora da Internet

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Numa das últimas edições da revista "Livros", o escritor Umberto Eco, que assinava uma coluna na última página da revista, contou a história da greve do jornal “Corriere della Sera”, do qual era assinante. Eco chamou atenção para o fato de que o jornal circulou apenas com textos de agências de notícias, e que a falta real que sentiu eram os textos dos colunistas que ele estava acostumado a ler.

O diálogo diário com alguns desses personagens que escreviam no jornal, de fato, segundo ele, fazia toda a diferença. O semiólogo percebeu isso quando os profissionais fizeram greve. Partilhava com essas pessoas ideias que muitas vezes eram, inclusive, discordantes do que ele pensava, mas eram, sim, ideias e era isso que ele buscava. Queria discutir com alguém os eventos que ocorriam no seu país e mundo afora. E buscava, naquelas pessoas, interlocutores.

Quem conhece a obra de Umberto Eco vai lembrar-se do livro “Em que creem os que não creem”, que se trata de um diálogo público mediado pelo jornal italiano “Liberal”, por meio de cartas trocadas entre Eco e o cardeal italiano Carlo Maria Martini.

No final, as cartas se transformaram numa obra que marca também o início do fim de um tempo. Talvez, não à toa, Eco publica sua última ficção, “Número Zero”, fazendo uma crítica severa contra os jornais italianos da era Silvio Berlusconi na Itália.

Lembrei-me desta história ao ler uma boa quantidade de textos sobre a chegada de novas ferramentas de IA na última semana, nos Estados Unidos, mas já já aportam por aqui. O ChatGPT 4o traz, talvez, a maior novidade. Para começar, este “o” minúsculo quer dizer “onidirecional” ou multimodal. A expansão da IA será, agora, capaz de responder com texto, som e imagem e interagir quase como uma pessoa numa velocidade semelhante ao humano numa conversa. Também poderá identificar as emoções de um indivíduo e interagir a partir delas.

Outra mudança importante se dá com o Google Overview. Com essa ferramenta, o Google começou a entregar no buscador um texto produzido por IA com alguns links, que sabe lá Deus quem vai abrir. O Overview está valendo nos Estados Unidos desde a última segunda-feira, 20, e surgem alertas por todos os lados sobre “monocultura” que a big tech está promovendo. Ou seja, se hoje estima-se que 40% dos conteúdos da Internet já são produzidos por IA, em muito pouco tempo, achar humanidade na Internet vai ser raro.

Não é exagero dizer que o mundo como a gente conhece hoje está acabando. O mundo do (pouco) diálogo entre humanos, permeado pela intolerância exacerbada, as bolhas, a cultura do cancelamento, em pouco tempo acaba. Opinar sobre algo e/ou falar com alguém de verdade no mundo virtual não será possível.

Em mais uma conversa, Umberto Eco nos deixou “Não contem com o fim do livro”, que é um bate-papo bem humorado com Jean-Claude Carrière sobre a possibilidade da resistência do livro. Queria muito que Eco fosse vivo e pudesse escrever sobre os movimentos em torno da IA. Como ele, considero vital a interação entre humanos. No fim das contas, porém, parece que ele foi o “Último Leitor”.

 

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