Logo O POVO+
Mil bibliotecas de Alexandria
Foto de Renato Abê
clique para exibir bio do colunista

Renato Abê é jornalista, escritor e especialista em jornalismo cultural com pós-graduação em artes cênicas

Renato Abê arte e cultura

Mil bibliotecas de Alexandria

Será que precisamos gastar mesmo toda essa energia e atribuir mil sentidos a recortes de segundos jogados na bola de neve sem freio que é a rede social?
Liniker conquistou o principal prêmio da noite, como Artista do Ano (Foto: Reprodução/Ellen Soares/Gshow)
Foto: Reprodução/Ellen Soares/Gshow Liniker conquistou o principal prêmio da noite, como Artista do Ano

Empolgada, a fã pede para segurar um dos troféus conquistados pela cantora Liniker no Prêmio Multishow 2024. A artista paulista recusa: "Acho que essa vitória é minha". A cena banal de apenas cinco segundos poderia ter sido só mais um momento de bastidor pós-evento, mas o trecho foi o suficiente para um embate de teses do TikTok ao Facebook.

A cantora é soberba? A fã é sem noção? O Prêmio Multishow é relevante? O público acha que o artista tem "corpo público"? Como marcadores identitários impactam na percepção do fã em relação ao ídolo? O País está "endeusando pessoas erradas"? Tudo e nada em debate a 80 quilômetros por hora.

Claro que o corriqueiro tem potencial para despertar mil interpretações - a arte está aí para provar que sim, afinal, "uma frase muda o fim do filme", como versa o rapper cearense Don L. Será, porém, que precisamos gastar mesmo toda essa energia e atribuir mil sentidos a recortes de segundos jogados na bola de neve sem freio que é a rede social?

O caso (já antigo, pois a pressa reina) da mulher que se recusou a ceder o assento para a criança está aí para provar que não. Teve quem se apressasse em tecer longas críticas à mãe por mimar o filho, apontando teorias da educação e tudo mais.

Por outro lado, teve a defesa da mãe, a discussão sobre o direito de imagem, o metadebate sobre o ato de debater e tem também eu aqui, que poderia estar abordando outro tema no artigo, mas a polêmica me fez pensar (como não?).

Mil facetas de uma mesma história que, sim, evoca pautas relevantes, mas, diante de tantas questões em simultâneo, a gente ainda lembra sobre qual assunto estamos falando?

Uma dubiedade desponta: não há como negar que estamos carentes de indagações para nos fazer refletir. Por outro lado, ninguém tem tempo para, de fato, pensar e elaborar sobre tais questões. Somos provocados a falar o mais rápido possível. Nesse frenesi, qualquer pensamento se esvazia.

O músico gaúcho Humberto Gessinger canta: "A gente queima todo dia mil bibliotecas de Alexandria". E segue: "Gente demais, com tempo demais, falando demais, alto demais". Tão alto que já está ensurdecedor.

Como jornalista de cultura e pessoa cronicamente online desde a comunidade "Eu odeio acordar cedo" do Orkut, também gosto muito de um debate a partir do cotidiano. Mas, pensando em todos os temas que esgotamos neste 2024 de mil assuntos, realmente me pergunto se não precisamos repactuar a direção da nossa atenção.

 

Foto do Renato Abê

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?