Jornalista, editor-chefe de Cultura e Entretenimento do O POVO
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Logo cedo, uma amiga manda mensagem lamentando a morte do ator Ney Latorraca (1944-2024): "Este ano não está para amadores", pontuou ela, que, vivendo há alguns dezembros em Portugal, viu de longe a partida de ícones como Ziraldo e Silvio Santos abalar o povo brasileiro nos últimos 12 meses.
Pensar em Ney me transporta diretamente para o "O Cravo e a Rosa" (2000). Eu, então uma criança de oito anos, era fascinado pela trama - que depois fui saber se tratar de uma versão da peça "A Megera Domada", de William Shakespeare. Na novela das seis, o ator paulista dava vida a Cornélio Valente, um manso homem rico enganado pela esposa.
O cômico folhetim de Walcyr Carrasco me leva à casa da minha infância, de onde aprendi a fabular o mundo por meio de brincadeiras, livros e, claro, novelas e outras pérolas da TV entre 1990 e 2000. Aquela criança que ria enquanto personagens jogavam outros em chiqueiros ao som do pagodeiro Belo ainda não sabia, mas definitivamente a vida "não é para amadores" - ampliando aqui a constatação da amiga quase lusitana.
Aquele menino também não conhecia o luto, mas, em 2024, não conseguiu escapar: teve de encarar a morte e entendê-la em suas múltiplas faces. Uma partida tão próxima e dolorida nos obriga inevitavelmente a mergulhar nos sentimentos mais primitivos e menos nobres. O findar é real e cru.
Embora "o próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela" (agora recorrendo a outro benquerer além-mar, Fernando Pessoa), ler sobre a partida de Latorraca é pensar em quem vive de perto esse adeus. O marido enlutado, a amiga sem rumo, o irmão em silêncio.
Claro que o Brasil em peso sofre a partida de um talento, mas domesticamente o luto dilacera. Quando essa dor nos visita tão intimamente, não há como olhar despedidas sem pensar novamente em estar lado a lado com a morte.
Antes de partir, porém, Latorraca nos presenteou com uma manchete que fez sorrir como Cornélio Valente faria. "Ney Latorraca faz 80 anos e busca sossego: 'Não tenho obrigação'", noticiou o Vida&Arte em julho último - rendendo releituras divertidas nas redes sociais.
Agora, tendo vivido esse 2024 capaz de ensinar qualquer amador, penso que o ator deixava ali uma pista sobre o viver e o morrer. Não há como frear o fluxo do tempo e suas consequências, mas há como passar por isso buscando todo o sossego possível e se ensinando rotineiramente sobre "não ter obrigação". Entre o chegar e o partir, há de ter o que nos mobilize a seguir. n
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