
Renato Abê é jornalista, escritor e especialista em jornalismo cultural com pós-graduação em artes cênicas
Renato Abê é jornalista, escritor e especialista em jornalismo cultural com pós-graduação em artes cênicas
Com câmeras analógicas em mãos, turistas franceses registram foliões animados vestidos do personagem japonês Pikachu enquanto um cortejo passa tocando sucessos do Péricles. É noite de domingo, o Oscar e o Carnaval se encontram para potencializar o clima de festa na Cinelândia, região do centro carioca conhecida por abrigar salas de cinema desde 1930.
Quando o Brasil finalmente recebe a estatueta, os franceses, os pokémons e os pagodeiros viraram uma só trupe animada dançando em frente ao Teatro Rival – joia rara da cultura brasileira que já foi palco para Dercy Gonçalves, Grande Otelo e tantas outras estrelas ao longo de 90 anos de existência.
Ali, cercado de tanta cor, brilho, signos e memórias, me pego pensando na entrevista que li dias atrás com o neurocientista Sidarta Ribeiro. Em reflexão sobre os impactos da vida moderna no ato de sonhar, o autor de “O Oráculo da Noite: a história e a ciência do sonho” (2019) aborda, em texto publicado no Estadão, os perigos de uma existência estéril, sem espaço para a criatividade.
“Elas (as novas gerações) serão extremamente literais porque o espaço da metáfora, da alegoria, da poesia, da filosofia, está sendo drasticamente reduzido”, aponta Sidarta, autor de obra que inspirou a exposição “Sonhos: história, ciência e utopia”, em cartaz no Museu do Amanhã, no Rio, até abril.
Das pinturas rupestres aos smartphones, as tecnologias nos impulsionam a progressos, mas também reduziram nossos espaços de fabulação. A sobrecarga de trabalho e os desafios sociais cada vez mais complexos não têm nos permitido acessar às sensibilidades do mundo interior para, assim, pensar além da pressa do corriqueiro.
“Acordamos atrasado, com o celular na mão, e não nos lembramos do que sonhamos e, muito menos, conseguimos contar o sonho para outras pessoas e interpretá-lo”, evidencia Sidarta. O pesquisador ressalta que, mesmo que o ato de sonhar já tenha sido levado muito a sério em civilizações anteriores, como no Egito e na Mesopotâmia, hoje temos bem menos tempo para o que não é lido como prático e útil.
De volta à noite foliã, sigo com o pé na festa e a cabeça voando ao pensar em todos os filmes, peças de teatro, apresentações musicais, shows de drag queens e tudo mais que rolou naqueles metros quadrados no centro do Rio ao longo de quase um século desde que a região recebeu o primeiro cinema nos anos 1930.
Projeto os próximos 100 anos: no futuro ainda vão achar sentido em festejar com desconhecidos as conquistas de uma obra de arte? Pensando nos alertas de Sidarta Ribeiro, tento buscar otimismo nesta noite de domingo de prêmios simbólicos e farras aleatórias.
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