
Renato Abê é jornalista, escritor e especialista em jornalismo cultural com pós-graduação em artes cênicas
Renato Abê é jornalista, escritor e especialista em jornalismo cultural com pós-graduação em artes cênicas
Comecemos pelo argumento número um: "Ah, mas as artes dramáticas devem permitir a imaginação. Uma personagem trans não precisa ser interpretada somente por uma pessoa trans. Se for por isso, só uma mãe pode interpretar uma mãe? Alguém jovem não pode interpretar um idoso? O bom ator pode pegar um personagem diferente de si".
Sim, a arte do "faz de conta" é inerente ao campo da atuação, mas, quando o assunto é "transfake" (atores cisgêneros em personagens trans), o debate extrapola o campo do ficcional. O tema está em voga mais uma vez com a escalação de Thainá Duarte, uma mulher cis, para "Geni e o Zepelim", filme de Ana Muylaert inspirado na música de Chico Buarque.
Não dá para fugir. A personagem "alvo de pedras" é uma travesti e, dessa maneira, foi defendida inclusive em meio à ditadura militar. Agora, em pleno 2025, faz algum sentido não aproveitar uma das raríssimas oportunidades de ter uma artista trans em protagonismo?
Num cenário hipotético, em que não temos, por exemplo, Erika Hilton sendo alvo de transfobia em escala internacional, como estamos vendo agora, somente o sentido poético de uma decisão como essa de Muylaert (de defender uma Geni cis) seria o foco do debate. Mas não dá para ignorar os repetitivos pagamentos de pessoas trans em diferentes frentes - inclusive no campo das artes, suposto território de aliados.
Sobre "transfake", conversei com a atriz Renata Carvalho em 2018, para reportagem do Vida&Arte. As palavras dela, porém, precisam ser novamente publicadas sete anos depois: "O que a gente está debatendo é essa engrenagem transfóbica que eles (aliados) acabam reforçando, por mais que tenham boa intenção. Quando nós deixamos de poder nos interpretar, nossa identidade é apagada".
Sobre o discurso de que o debate sobre transfake poderia representar censura, Renata rebateu, apontando que quem está em espaço de hegemonia costuma recorrer a argumentos drásticos. "Os senhores de escravos diziam que com a abolição o Brasil ia quebrar, os homens diziam que as mulheres não tinham capacidade para votar", enumerou. "Esse discurso é típico da estrutura patriarcal do País".
A atriz completou: "Essa ideia de que o artista pode interpretar qualquer papel é do mundo ideal, na prática, não é assim. O fato de eu ser travesti me tira de todos os papéis. Essa liberdade é para quem? É para os homens cis brancos que já têm espaço garantido", completou a atriz lá em 2018, mas, infelizmente, está tendo de dizer novamente o óbvio em 2025. Muylaert é uma grande cineasta, torço para que ela mude os rumos dessa decisão, mas o dano está feito: Geni levou mais uma pedrada.
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