
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Na contramão do que ocorre no resto do mundo, a discussão sobre drogas no Brasil é norteada por uma visão conservadora e míope. O populismo penal impera em detrimento de uma compreensão mais ampla, com foco na saúde pública e em medidas alternativas de prevenção e punição. Os resultados, desastrosos, podem ser vistos na verdadeira epidemia de organizações criminosas que se alimentam da superpopulação carcerária.
Na semana, o plenário do Senado aprovou a PEC 45/2023, que insere no artigo quinto da Constituição a determinação de que é crime a posse ou porte de qualquer quantidade de droga ou entorpecente “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, observada a distinção entre traficante e usuário”.
A proposta é de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, e seguirá agora para a Câmara dos Deputados. No texto que embasa a matéria, lê-se o seguinte: "entendemos que a modificação proposta está em compasso com o tratamento multidisciplinar e interinstitucional necessário para que enfrentemos o abuso de entorpecentes e drogas afins, tema atualmente tão importante".
Nada é menos multidisciplinar e interinstitucional que confinar a questão das drogas apenas à esfera penal. Pela lei, você se torna potencialmente criminoso simplesmente pelo fato de portar uma trouxinha de maconha. Cabe ao agente legal, no caso a polícia, estabelecer essa diferença caso a caso. Seguem os desdobramentos dessa alteração legal para que possamos perceber o tamanho da enrascada em que nos metemos.
Em primeiro lugar, a atividade policial será sobrecarregada com essa nova atribuição de definir quem é traficante e quem é usuário. Trata-se de mais uma atribuição para quem faz segurança nas ruas. Além disso, qual o ponto de corte de um para outro? Transportar um helicóptero repleto de cocaína é tráfico? Empresário que dá suporte à rota internacional de entorpecentes é traficante? Produzir e refinar coca sob a fachada de empreendimento esportivo é uma prática ilegal? Se sim, por que tais pessoas não estão presas então? Essa situação muda com a entrada em vigor da PEC?
Alguém acredita mesmo que filhos e parentes de parlamentares e de gente poderosa serão punidos a partir da promulgação da PEC? Em suas bolhas de proteção, eles poderão fumar, injetar e cheirar à vontade, como sempre. Os suspeitos de sempre continuarão sendo encarcerados, independentemente da quantidade de drogas que transportem.
A diferença é que as prisões ocorrerão sob o aval da Constituição Federal, legislação essa que poderá ser chamada, daqui por diante, de Constituição Cidadã (de bem). As prisões, que já estão abarrotadas, ficarão ainda mais cheias, municiando o exército de facções que já se fazem presentes em cada estado brasileiro.
Enquanto isso, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), assim como qualquer secretaria de segurança do país, comemora os recordes de apreensão de entorpecentes no mês. Em março deste ano, foram apreendidas 63,7% mais drogas que no mesmo período de 2023.
Sem desmerecer o valoroso trabalho dos policiais que se dedicam a essa tarefa, há muito esses números deixaram de significar um avanço no combate ao crime. Hoje, tais dados só demonstram a imensidão do mercado de entorpecentes no mundo, haja vista o Ceará ser rota privilegiada para os cartéis internacionais. Quantos milhões de toneladas de cocaína e maconha terão de ser apreendidos para acabar com o problema das drogas no Brasil?
Diversos países têm buscado formas alternativas para enfrentar essa questão. Em Portugal, a descriminalização das drogas de todos os tipos foi adotada desde 2001. O consumo passou a ser considerado como uma contravenção e um limite para uso pessoal foi estabelecido. Em paralelo, foram criadas uma rede de auxílio aos dependentes e uma estrutura de redução de danos. Ao contrário da hecatombe prevista, a quantidade de usuários não aumentou, pelo contrário. O programa, hoje, passa por ajustes após mudanças em seu desenho inicial.
A Alemanha, por sua vez, descriminalizou parcialmente o uso de maconha. Maiores de 18 anos podem cultivar até três plantas, por casa, mas os usuários não podem fumar perto de escolas, centros desportivos ou em "zonas de pedestres", das 7h às 20h. Entre as metas da nova legislação destacam-se: minar o mercado ilegal, tirar de circulação a cannabis de baixa qualidade e restringir os fluxos de receita do crime organizado.
O Brasil possui uma série de especificidades em relação aos dois países citados e isso não pode ser desconsiderado. No entanto, há um ponto chave a ser levado em conta nessa discussão: é preciso encarar o problema de forma adulta, compreendendo que o uso de entorpecentes é parte constitutiva de nossa sociedade, e não sob o viés do pânico moral.
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