
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Para muitos fortalezenses, o problema das facções criminosas está circunscrito aos territórios mais vulneráveis da cidade, como se houvesse algum tipo de cordão de isolamento que as mantivessem afastadas das classes mais abastadas. A lógica policial reforça esse tipo de pensamento ao concentrar a maior parte de seu efetivo e recursos em bolsões de segurança.
Um ex-secretário da segurança me contou, certa vez, que o policiamento em Fortaleza é feito por círculos concêntricos em que o círculo menor, formado pela orla litorânea, conta com mais policiais e câmeras. À medida em que esse círculo vai aumentando, até chegar às periferias, o número de efetivo e de câmeras vai diminuindo. “Isso é feito no mundo tudo, até em Paris”, me disse, como se não houvesse nada mais a fazer.
O resultado dessa política pode ser visto na disparidade entre os Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs) dos bairros de Fortaleza. Enquanto existem Áreas Integradas de Segurança (AIS) com números próximos aos de países desenvolvidos, temos verdadeiras zonas de guerra nas demais. Equilibrar tais desigualdades é uma arte dificílima, porque o crime organizado se estrutura como um negócio. E o capitalismo está sempre em expansão para que possa se manter, ou seja, é preciso ampliar constantemente sua área de atuação, buscando novos territórios e usuários.
Nesse movimento, comunidades encravadas na área turística são um ponto de apoio estratégico. E quem conhece a cidade sabe que há dezenas de espaços assim. Um dos hotéis mais icônicos de Fortaleza tem como cenário o morro do Oitão Preto, uma comunidade que sofre com o tráfico de entorpecentes. Para quem vem de fora pode ser uma imagem pitoresca, mas o choque de realidade tem início quando os próprios funcionários do hotel avisam para que se tenha cuidado com o entorno.
Historicamente, o bairro Moura Brasil, onde fica o Oitão Preto, serviu de campo de concentração para impedir que os retirantes se alojassem em outras regiões da cidade. A Fortaleza erguia seus muros contra as vítimas de calamidades ambientais por meio de um tratamento tão desumano que a área se tornou conhecida como “Curral”. O arraial se urbanizou, mas o estigma permaneceu. O trabalho de contenção, agora, não se restringe a barrar pessoas fugindo da seca, mas impedir que grupos armados atuem impunemente no entorno.
O trio de turistas piauienses desconhecia essa realidade. Seguiram por um caminho indicado pelo GPS, que também desconhece essa realidade, e foram surpreendidos por um ataque promovido por criminosos locais. Um dos passageiros, o representante comercial Aldete Robério Saldanha, de 58 anos, foi baleado no rosto e morreu na hora. Os outros dois conseguiram escapar sem ferimentos, mas com um trauma que irão carregar para o resto da vida.
Além de regular quem entra e quem sai de seus territórios, as facções impõem sanções, por meio de ameaças, sobre o funcionamento do comércio e de escolas. Em fevereiro deste ano, o crime tentou decretar luto nos bairros do Pirambu, Carlito Pamplona e Barra do Ceará por causa de um traficante morto no Rio de Janeiro. Em março, no bairro Vila Velha, comerciantes tiveram de fechar suas portas após um líder de facção ser morto em uma intervenção policial.
Neste fim de semana, tomamos conhecimentos que as mesmas práticas passaram a ocorrer na Praia de Iracema, ou seja, no miolo do círculo concêntrico mais seguro de Fortaleza. Conforme O POVO noticiou, pelo menos quatro bares e casas de shows cancelaram a programação ou deixaram de funcionar por medo de ameaças do Comando Vermelho, entre sexta e sábado.
Nas redes sociais, os estabelecimentos alegaram que as medidas tinham como objetivo "prezar pela segurança de funcionários e clientes" e "resguardar a integridade física do público". Um homem foi preso após ser identificado pelas câmeras de videomonitoramento.
A área turística é a vitrine de Fortaleza para turistas nacionais e estrangeiros. Sua importância econômica para o Estado é imensa. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que o turismo cearense registrou o segundo maior desempenho do país em junho, ficando atrás apenas da Bahia. Por causa disso, já virou rotina a realização de operações policiais com o objetivo de fornecer segurança a quem vem de fora do Estado durante o período de alta estação.
No entanto, a proximidade de áreas dominadas pelo tráfico dos pontos turísticos é um desafio permanente às autoridades. As áreas de passeio da Beira Mar, por exemplo, são fortemente policiadas, mas basta o turista sair desse perímetro seguro para se sentir exposto. O que aconteceu neste fim de semana é um marco para a cidade: quando os grupos criminosos se sentem à vontade para atacar a Joia da Coroa, é sinal de que algo muito estranho está acontecendo.
Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.