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Sobre o uso político das indignações seletivas
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

Sobre o uso político das indignações seletivas

A resposta diante de uma tragédia não necessariamente deve ser a de ampliar as penas, mas de fazer com que elas sejam efetivamente cumpridas
VELÓRIO da estudante Natany Alves reuniu uma multidão no Centro de Quixeramobim (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE VELÓRIO da estudante Natany Alves reuniu uma multidão no Centro de Quixeramobim

As imagens me dão asco toda vez que assisto: três homens se aproximam do carro da estudante Natany Alves, em uma rua de Quixeramobim (CE). Eles percebem a oportunidade da abordagem, posicionam-se e abrem a porta do veículo. Em seguida, rendem a jovem, que será brutalmente assassinada logo depois. Não havia qualquer motivação, além da crueldade, para fazer o que fizeram. O choque foi tamanho que o município cancelou os festejos de Carnaval.

Quero que os suspeitos sejam processados, condenados e que paguem pelo que fizeram. No entanto, é preciso que a punição ocorra seguindo todos os trâmites legais, com toda a possibilidade de defesa prevista pelo Código Penal Brasileiro (CPB). O trabalho da Defensoria Pública, nesse sentido, é fundamental para que todo o processo judicial possa ser cumprido dentro da legalidade.

Escolher o caminho contrário é ser cúmplice de justiçamentos, como o que ocorreu no Interior de Pernambuco, em que um homem foi arrancado da viatura policial e brutalmente assassinado pela população de Tabira (PE). Havia apenas dois assassinos antes desse ato; com a morte do suspeito, provocada por uma multidão em descontrole, o número se multiplicou por dezenas.

Cada um dos moradores participantes do linchamento — pessoas que imaginamos serem pacatas e ordeiras em seu cotidiano — possui as mãos manchadas de sangue. Não se tratou de justiça, mas de apenas uma vingança que destoa do que compreendemos como civilização.

A resposta diante de uma tragédia não necessariamente deve ser a de ampliar as penas, mas de fazer com que elas sejam efetivamente cumpridas. E isso se estende para todo o tipo de crime. O que mais se vê, contudo, é o recurso à seletividade penal, em que as ocorrências criminais e os tipos de criminosos são considerados sob uma perspectiva radicalmente diferente: para uns, o rigor da lei, enquanto para outros sempre cabe uma brechinha, um atenuante.

Um exemplo bastante ilustrativo disso é a campanha em prol da extinção da Lei da Ficha Limpa. Basta uma rápida olhada nas redes sociais para descobrir que os apoiadores de tal iniciativa são os mesmos que se arvoram a cobrar leis mais rígidas para quem não é da sua patota. Aí fica fácil posar de guardião da moralidade.

Há ainda quem cobre anistia para um processo que sequer foi julgado e que exige todo o anteparo legal de defesa para os denunciados. Vamos trocar as posições e nos indignar que os golpistas tenham seus defensores legais? É direito de todos eles a ampla defesa, assim como compete aos três suspeitos pela morte de Natany, por mais que a crueldade do ato nos cause repulsa.

Têmis, a deusa-símbolo da Justiça, possui os dois olhos vendados como forma de lembrar que todos somos iguais perante o poder judiciário, mas sempre há os que tentam levantar o pano na altura do olho direito.

Didier Eribon, em seu livro "Punir, uma paixão contemporânea", aborda essa questão. Há um anseio global por mais segurança e punição, mas essa intolerância com o ato criminoso não se expressa de forma homogênea. "Essa tendência, entretanto, não afeta da mesma forma todas as transgressões nem, consequentemente, a totalidade de seus autores. Ela convenientemente poupa as classes dominantes e atinge mormente os mais desfavorecidos. A fraude fiscal é geralmente mais tolerada do que o roubo de estabelecimentos", argumenta.

O crime no "varejo", por sua vez, possui uma caixa de ressonância maior. E isso não ocorre de forma inocente, mas obedece a uma lógica política. Como destaca Eribon: "As elites políticas reforçam, e até antecipam, a inquietude dos cidadãos quanto à segurança. A maneira como elas abordam essas questões vai além da resposta democrática(...) Apoiadas nesse caso pela abordagem midiática dos acontecimentos violentos, essas elites assimilam, exacerbam, e até mesmo suscitam a ansiedade e medos dos cidadãos. Elas os instrumentalizam. Elas visam, na verdade, encontrar benefícios eleitorais".

E concluindo: "Há que reconhecer o frequente sucesso de tais estratégias ao longo das últimas décadas para os partidos e políticos que se utilizaram desses temas para atiçar as emoções e as paixões que eles geram. O populismo penal chega a ser tão lucrativo para essas elites que seria complicado, uma vez alçadas ao poder, colocar em prática outras agendas políticas, como, por exemplo, a justiça social. A intolerância seletiva da sociedade e o populismo penal dos políticos assim se correspondem".

A resposta a essa condição de violência disseminada à qual estamos submetidos passa certamente por nossa indignação, em primeiro lugar, mas por uma indignação que abranja as variadas dimensões da criminalidade em nosso país, que não seja míope e que tenha como referência a "democratização" da punição dos responsáveis, indo além dos culpados de sempre.

Superar esse desafio, principalmente, passa pelo aprimoramento de nosso sistema de justiça criminal. A saída não se dará pelo receituário da extrema-direita, como se prega por aí, mas pela firme e justa aplicação do Direito.

 

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