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Agressores e aliados: o duplo papel dos homens no feminicídio
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

Agressores e aliados: o duplo papel dos homens no feminicídio

Se não mudarmos a mentalidade, se não mudarmos a cultura e não fornecermos exemplos de uma masculinidade que não seja tóxica, machista e violenta, nada irá mudar
Tipo Opinião
Protesto contra o feminicídio e violência contra mulheres (Foto: Edgard Garrido/Reuters/Direitos reservados)
Foto: Edgard Garrido/Reuters/Direitos reservados Protesto contra o feminicídio e violência contra mulheres

No ano passado, foi realizada uma campanha de conscientização sobre a violência contra a mulher, pouco antes do início de uma partida do Ceará, na Arena Castelão. Um grupo de voluntárias distribuía panfletos, ressaltando a importância do tema e a divulgação do disque 180. Achei a iniciativa bastante interessante. Quando uma delas se aproximou, estiquei o braço para receber o material, mas ela não me entregou, preferindo repassar os papéis às mulheres que estavam ao meu lado. Aquela atitude me deixou intrigado e me fez ficar pensativo por muito tempo.

Por qual motivo houve uma recusa em me fornecer aquele panfleto? A ideia de que eu sendo homem não faria parte daquilo? Se acaso o pensamento tiver sido esse, não deixa de soar como uma estratégia míope. Por ser o principal responsável pela violência de gênero, o homem tem de ser o vetor das políticas e ações de combate a esse tipo de prática.

É um desafio muito maior estabelecer um diálogo com os homens, pautá-los sobre temas espinhosos, que por décadas ficaram de fora de nossas conversas. Haverá reações: alguns torcedores poderiam pegar o panfleto e amassá-lo, sem ao menos lê-lo. Mas trata-se de uma tarefa incontornável. Não iremos superar a violência diária cometida contra as mulheres sem que os homens tenham papel ativo e sem que sejamos incluídos nessa luta. Se não mudarmos a mentalidade, se não mudarmos a cultura e não fornecermos exemplos de uma masculinidade que não seja tóxica, machista e violenta, nada irá mudar.

No último dia 9, a lei que formalizou o conceito de feminicídio completou 10 anos. Não por acaso, a medida foi assinada por uma presidente mulher. De lá para cá, muito se ganhou no combate a esse tipo de crime. Ao mesmo tempo percebe-se o incremento dos assassinatos das mulheres mesmo quando os índices globais de homicídios permanecem inalterados. As mulheres continuam sendo mortas e a letra fria da lei parece ser uma ferramenta impotente para evitar que isso ocorra.

Dados do Instituto Sou da Paz revelam que, em um terço dos casos de agressão por arma de fogo, a vítima já havia denunciado violência doméstica. Conforme o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), o Brasil contabilizou a morte de 7.072 mulheres vítimas de feminicídio entre 2020 e 2024. Nesse período, o ano de 2024 bateu um recorde no número de casos, com 1.459 assassinatos, um número 7,6% maior que no ano anterior. Como uma reação ao aumento e à gravidade dos casos, a pena foi aumentada, passando para um prazo máximo de 40 anos de reclusão.

A legislação em si é algo extremamente válido e importante. No entanto, ela precisa de um suporte social, de ação governamental e de mudança de mentalidade. Acredito demais no poder da educação. Há muito tempo bato na tecla que é preciso haver uma formação específica, começando ainda no ensino fundamental, que tematize o combate à misoginia e estabeleça uma discussão franca sobre os papéis de gênero.

É preciso desativar a bomba-relógio dessa masculinidade tóxica que se expressa, em seu modo mais extremo, nas formas como as jovens e adolescentes são assassinadas pelas facções: com partes do seu corpo decepadas e mutiladas. Se, entre os homens e os meninos, a figura do "guerreiro" gera consideração e respeito, às mulheres e meninas, por sua vez, cabe apenas a parte instrumental no mundo do crime. Vimos recentemente uma manifestação de rua homenageando um homem morto durante um assalto que ele mesmo cometeu. Quantas passeatas são feitas em memória de nossas adolescentes vítimas de feminicídio?

Vale ressaltar que a violência de gênero se expressa e persiste não somente nas classes populares, mas está muito presente na classe média e nas esquerdas. Quem nunca ouviu o relato acerca de um esquerdomacho opressivo e agressor? Como homem e como alguém que possui espaço no debate público, a partir de um viés progressista, também me incluo como um sujeito passível de praticar violências de gênero. Não estou imune a isso, mas, mesmo sabendo das minhas limitações e do meu lugar de fala, preciso abordar esse tema sobre o risco de pecar por omissão.

E aí entra uma missão que é só nossa. Cabe aos homens também trazer essa pauta para seus grupos de WhatsApp, suas rodas de conversa após o racha e durante o papo do cafezinho. É preciso ter coragem para encarar a covardia disfarçada de valentia de colegas de trabalho e de amigos de longa data. Vivemos, em um nível global, um revival do patriarcalismo liderado pelo conservadorismo estadunidense. É tempo de cerrar fileiras no sentido inverso, a fim de evitar que ganhos obtidos na igualdade dos gêneros e na promoção da diversidade sejam perdidos.

Por fim, para que os homens possam ser inseridos plenamente nessa luta maior, é preciso que sejamos vistos como potenciais aliados, a partir de um pensamento estratégico, e não apenas como agressores em potencial, o que também somos. É contraditório? Sim. Mas o ser humano é feito de contradições, não cabendo em perfis pré-prontos para o cancelamento.

 

Foto do Ricardo Moura

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