
Antropóloga, pesquisadora de culturas alimentares, doutoranda UFBA e Coordenadora de Cultura Alimentar e Pesquisa da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco
Antropóloga, pesquisadora de culturas alimentares, doutoranda UFBA e Coordenadora de Cultura Alimentar e Pesquisa da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco
A Semana Santa no Ceará tem comidas que não são comuns no nosso cotidiano, assim como são as comidas de celebração, que fogem do ordinário, sendo especiais e esperadas. Poderíamos comer pão de coco, peixe, ovo de Páscoa em qualquer outro momento, assim como comer peru recheado com farofa ao longo do ano, mas não costumamos fugir dos nossos padrões alimentares.
No Ceará, o pão de coco tem destaque especial no período da Páscoa. Presente de forma quase onipresente nas mesas durante o período, ele transita por todas as refeições, do desjejum à ceia. Sua força simbólica não se limita ao sabor: expressa uma tradição de presentear.
Esse costume cearense encontra ressonância em outras tradições pascais ao redor do mundo, em que o pão com leve doçura aparece como símbolo de renovação e partilha. Em Portugal, o Folar é oferecido como sinal de afeto; na Inglaterra, os Hot Cross Buns trazem especiarias e cruzes marcadas na massa; na Itália, a Colomba Pasquale tem formato de pomba e cobertura açucarada; na Grécia, o Tsoureki é trançado e perfumado com especiarias. Em comum, esses pães festivos unem memória,
fé e comunidade.
Mas aqui, no Ceará, o sabor do coco e os modos de fazer locais conferem novos sentidos a essa herança. Curiosamente, essa tradição parece se restringir ao território cearense. Não há registros significativos de que o pão de coco seja um marcador simbólico da Semana Santa em outros estados brasileiros. Essa singularidade sugere uma tradução local das celebrações cristãs de matriz europeia, recriadas aqui com ingredientes, técnicas e sentidos próprios. No Quilombo Conceição dos Caetanos, por exemplo, o pão de coco convive com o bolo de carimã, revelando como a diversidade étnico-cultural molda, amplia e ressignifica as práticas alimentares, que são dinâmicas e não param no tempo.
Por outro lado, as prateleiras dos supermercados revelam uma tentativa de padronização das tradições: bacalhau importado, mesmo com a fartura de peixes de nosso litoral; ovos de Páscoa com embalagens vistosas, mesmo diante da alta do cacau causada por crises no continente africano, seu maior produtor. O vinho, símbolo religioso por excelência, tem produção nacional cada vez mais qualificada, embora muitas vezes
negligenciada em favor de rótulos estrangeiros.
Essas escolhas — entre o local e o global, entre o artesanal e o industrial, entre o comunitário e o mercadológico — revelam os dilemas contemporâneos de nossas práticas alimentares. A Semana Santa, portanto, se mostra como um campo privilegiado para refletir sobre pertencimentos, consumo e memória.
De onde vêm os alimentos que compõem sua mesa nesse período? Que histórias carregam? Optar por comprar o pão de coco de uma empreendedora local, escolher o peixe de um pescador ou brindar com um vinho nacional são formas de celebrar não apenas a fé, mas também a cultura e a economia locais. Porque alimentar-se é também um ato político e simbólico.
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