Considerado um dos maiores especialistas no país na área de mudanças ambientais globais, Carlos Afonso Nobre é categórico ao dizer que não há mais como impedir desastres climáticos. Contudo, é possível proteger as populações dos efeitos desses eventos extremos. Governos precisam se preparar para situações de perigo, com plano para a evacuação das pessoas das regiões de risco.
Nobre é doutor em Meteorologia pelo MIT (Massachussets Institute of Technology) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O climatologista é conhecido internacionalmente por seus estudos que relacionam a ação antrópica na Amazônia às alterações climáticas globais.
Segundo ele, pouquíssimas cidades brasileiras são preparadas para situações do tipo e "eleger políticos que se preocupem com a emergência climática" é prioridade. "Precisamos tomar muito cuidado com a classe política negacionista", alerta.
O POVO repercutiu o cenário de extremos climáticos com o pesquisador, que integra o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), da ONU, e é membro da Academia Brasileira de Ciências, além de ter idealizado e dirigido o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).
O POVO - Como a gente pode situar as inundações no Rio Grande do Sul dentro do cenário de alterações climáticas globais que estamos vivendo? Como dimensionar?
Carlos Nobre - Globalmente, todos os cenários climáticos mostram que os extremos climáticos estão ficando mais frequentes e batendo recordes. Isso é devido ao aquecimento global. Nós tivemos, no ano passado, o ano mais quente do registro histórico desde o último período interglacial. A temperatura chegou 1,49 ºC mais quente no planeta. Esse ano continua quente. De março do ano passado até fevereiro desse ano, chegou a 1,56 ºC. É o momento quente mais da história dos oceanos. Todos, Oceano Atlântico, Pacífico, Índico. Então, isso tem gerado esses cenários de que fenômenos meteorológicos, oceânicos que ocorrem há milhões de anos, ocorram com mais frequência e quebrando recordes. Como o exemplo das chuvas do Rio Grande do Sul. Esse é um evento meteorológico que acontece. A meteorologia conhece muito bem. Nós chamamos de bloqueio atmosférico. A baixa pressão ficou mais do lado do sul do Brasil e a alta pressão ficou ao norte. A alta pressão criou essa onda de calor sem chuvas bloqueando as frentes frias e fazendo muita chuva. Isso sempre aconteceu. Agora, esses fenômenos estão acontecendo batendo recordes. Causam chuva mais forte, seca mais forte, onda de calor mais forte, ventos mais fortes. É um efeito direto do aquecimento global. Em todo o planeta, esses eventos extremos estão ficando mais frequentes e quebrando recordes.
OP - Quais os fatores foram preponderantes para que esse desastre ambiental tenha atingido essas proporções?
Carlos Nobre - Eu já respondi, de certo, modo a sua segunda pergunta. Um sistema no Hemisfério Sul, de um bloqueio atmosférico que vem lá do Oceano Pacífico. A baixa pressão que fica ali na costa do Chile, atravessa os (Cordilheira dos) Andes e vem ali pela Argentina, Uruguai, Paraguai e Sul do Brasil. Esse é um sistema de bloqueio e fica uma alta pressão ao norte, que está no Centro-Oeste, no Sudeste gerando quase zero chuvas, muito calor, ondas de calor e bloqueia as frentes. Foi isso que aconteceu nesse fenômeno e o vapor da água foi abastecido por aquele fluxo de vapor d'água que vem da Amazônia — paralelo aos Andes — desce e alimentou aquelas chuvas todas da semana passada no Rio Grande do Sul. Esses são fenômenos meteorológicos que sempre existiram, por milhões de anos. Mas, agora, devido ao aquecimento global, eles se tornam mais intensos. O ar está mais cheio de umidade, os oceanos evaporam muito mais água porque estão mais quentes. Então, estes eventos vão batendo recordes.
OP - Porque os governos demoram tanto tempo para agir, considerando que os estados possuem instituições especializadas que emitem alertas de perigo?
Carlos Nobre - De fato, as previsões meteorológicas desses eventos extremos, mais de 90% são previstas com muitos dias de antecedência, como foi o caso deste evento recorde de chuvas no Rio Grande do Sul. O Brasil desde 2011 criou — de fato, fui eu que criei — o Centro de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais, o Cemaden. O Cemaden vem fazendo esses alertas. Olha todo risco dos fenômenos meteorológicos climáticos extremos e sabe quais são as regiões, as cidades, os riscos de inundações, de enxurradas, de deslizamentos em encostas, tudo isso. E faz esses alertas, passa esses alertas para Defesa Civil. A Defesa Civil logicamente tem uma obrigação muito grande de, imediatamente, proteger as populações, retirar as populações das áreas de altíssimo risco, mesmo nas áreas de alto risco. Desse fenômeno no Rio Grande do Sul, as defesas civis foram avisadas com dias de antecedência. Quando o Rio Taquari começou a subir muito, uma semana atrás, e, depois, quando essa inundação chegou no Rio Guaíba, inundou grande parte de Porto Alegre.
Tudo isso foi antecipado e a Defesa Civil teve obrigação de ir e retirou dezenas e dezenas e dezenas de milhares de pessoas em áreas que foram inundadas e até em áreas que foram também deslizadas. A gente tem visto muito mais na imprensa, na televisão, áreas inundadas, mas houve, nas serras gaúchas, muitos deslizamentos em encostas que também levaram a mortes. Então, as defesas civis todas foram informadas e atuaram. Se comparar a atuação da Defesa Civil agora nesse evento com aquele de setembro, na bacia do Rio Tocaria. Agora, foi mais efetiva. Naquele, ela demorou muito para atuar, no ano passado.
Isso precisa ser expandido muito em todo o Brasil. A qualidade desses alertas, como eu disse, já ficou com dias e dias de antecedência. Então, os sistemas precisam ser espalhados em todo o Brasil. Todas as áreas de risco deveriam ter sirenes. Quando há um risco, sirenes deviam disparar e as pessoas deviam saber para onde ir. A gente tem bons exemplos ali na região serrana do Rio. São pouquíssimas cidades que têm alerta de sirenes, que as populações todas são educadas para onde ir quando essas sirenes tocarem. Lugares seguros, escolas e outros lugares. Esses lugares seguros têm que manter alimentos, remédios, água porque as populações podem ficar vários dias ali, como está acontecendo no Rio Grande do Sul. A gente tem pouquíssimas cidades no Brasil que estão muito preparadas. Alertas, sirenes, as populações foram educadas porque já aconteceram muitos desastres com um enorme número de mortes. Então, os governos têm que atuar muito.
Os estudos do Cemaden mostram mais de dez milhões de brasileiros morando em áreas de risco. Então, tem que ter um gigantesco esforço de criar sistemas de alerta, sirenes, as pessoas precisam ser muito avisadas. Em muitas cidades, as pessoas morando em áreas de risco se cadastram com seu celulares e a Defesa Civil envia uma mensagem, um SMS do risco mas, em muitos desses desastres, as chuvas derrubam a eletricidade, a internet. Como está acontecendo no Rio Grande do Sul. Então, não pode ser só comunicação por celulares, tem pessoas que não têm celulares. Tem que ser uma comunicação por sirenes. Isso é em todo lugar que tem desastres. Por exemplo, no Japão, terremotos, nos Estados Unidos, furacões. Tem que ter sistema de alerta, Defesa civil tem que sair com sirenes, com os veículos. Tudo isso tem que ser feito.
A gente viu muito no Rio Grande do Sul que alguns desses atendimentos são muito espontâneos, são voluntários que estão se dedicando imensamente. Mas nós precisamos ter uma organização em todas as cidades sob risco de desastres como esse, deslizamentos, inundações, enxurradas. Nós temos que preparar. O Cemaden está fazendo isso tudo agora. Mais de 1,9 mil cidades brasileiras tem esse tipo de risco.
OP - Em que medida o negacionismo climático tem influenciado e como combater isso?
Carlos Nobre - O negacionismo é uma minoria da população. O Brasil historicamente era um dos países com o maior nível de brasileiros respondendo pesquisa de opinião preocupados com as mudanças climáticas. O que aconteceu, o que vem acontecendo em todo mundo nas últimas décadas é o crescimento do do populismo de políticos. A maioria dos populistas são de extrema direita, mas há também alguns populistas de extrema esquerda e a maioria desses populistas são pessoas anticiência. Nós já tivemos um ex-presidente anticiência e negacionista das mudanças climáticas. Um ex-presidente dos Estados Unidos, Trump supernegacionista. Tirou os Estados Unidos do Acordo de Paris — para reduzir as emissões (gases de efeito estufa).
Então, isso é uma preocupação muito grande mundialmente. Nós temos um percentual de políticos no Congresso, nas assembleias legislativas, nas câmaras municipais, que não se preocupam, muitos são negacionistas das mudanças climatizadas, maior do que a população brasileira. A população brasileira tem elegido mais políticos negacionistas do que realmente a própria população é (negacionista). Nós precisamos realmente atuar muito.
Um exemplo do risco de ter políticos assim: existe um projeto de lei, lá no Congresso, para reduzir as áreas protegidas da Floresta Amazônica de 80% para 50%. Isso é gravíssimo. A Floresta Amazônica está próximo do ponto de não retorno. Nós temos que restaurar a Floresta Amazônica e não desmatar mais ainda. Então, precisa tomar muito cuidado com essa classe política. Os desmatamentos são 50% das emissões de gás de efeito estufa do Brasil. Nós temos que zerar o desmatamento em todos os biomas, isso é um plano do Governo Federal e de alguns governos estaduais. Por exemplo, o governo do Pará tem um plano de zerar o desmatamento até antes de 2030. Precisamos tomar muito cuidado com a classe política negacionista. Agora, nas eleições de vereadores e prefeitos, em outubro, vamos tomar muito cuidado, muito cuidado. Que a população brasileira busque eleger políticos que se preocupem com a emergência climática e protejam as cidades, os estados com essa condição.
OP - Como prevenir que desastres dessa dimensão aconteçam? Quais instrumentos/órgãos devem ser fortalecidos para isso?
Carlos Nobre - Não há como impedir esses desastres. Para impedir esses desastres, é uma escala talvez de um século. Nós temos que zerar as emissões, depois remover uma grande quantidade de gás carbônico, centenas de bilhões toneladas de gás carbônico da atmosfera para fazer o clima voltar a ser o clima de antes da Revolução Industrial, lá atrás, que começou queimar carvão e depois petróleo, gás natural e todas essas emissões. Então, não há uma nenhuma possibilidade de imaginar evitar os extremos climáticos. Agora, proteger as populações dos extremos, sim. Nós temos dois grandes desafios. O primeiro é imediato. É o que eu falei. O Cemaden, as defesas civis, o serviço geológico já mapearam mais de mil municípios, as suas áreas de risco. Este ano, estão aumentando para quase dois mil municípios. Um supermapeamento, todas as áreas de risco, deslizamento, inundações, enxurradas e também as ressacas que chegam nas zonas costeiras. Todas as áreas de risco.
Prevenir o impacto do extremo climático, do desastre é retirar as populações dessas áreas de risco com muita, muita chuva, com fortes enxurradas, com rajadas muito fortes de ventos. Prevenir é retirar essas populações, ter locais protegidos, locais que as populações vão estar com sistemas de saúde, com alimentação, com água como está vendo no Rio Grande do Sul. As populações aí que foram retiradas, dezenas e dezenas de milhares de pessoas estão alojadas. Com o sistema voluntário ali, foram os voluntários que brilhantemente fizeram isso. Mas, agora, tem que ter um sistema de atuações, de políticas públicas, de criação desses locais seguros para abrigar essas pessoas antes do desastre. Essas pessoas têm que ser deslocadas e aí vai salvar as vidas, vai se proteger essas pessoas. Então, isso é para prevenir os desastres que não tem mais volta. Eles vão continuar acontecendo, o aquecimento global continua. A partir de agora, a gente tem que está muito preparado para todos esses desastres.