Para explorar como as novas tecnologias estão transformando os modelos de combate em conflitos armados e entender o papel do ser humano nesse cenário, O POVO+ conversou com Gustavo Guerreiro, doutor em políticas públicas e pesquisador do Observatório das Nacionalidades da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Segundo ele, "guerra e tecnologia são dimensões inseparáveis", com o ser humano desempenhando um papel decisivo no desenrolar e na resolução dos conflitos.
O POVO+ - Como o senhor avalia que as novas tecnologias de guerra estão influenciando as táticas e estratégias militares tradicionais? Há aspectos do combate humano que a tecnologia ainda não pode substituir ou replicar?
Gustavo Guerreiro: Certamente que sim. As tecnologias influenciam o jeito de guerrear desde sempre. Mesmo os indígenas, como os suruwahas, especialistas em manipulação bioquímica, utilizavam flechas envenenadas e quando queriam esgotar recursos de pesca de povos inimigos, envenenavam riachos usando a raiz de uma planta (Timbó) para atordoar os peixes e assim esgotar os recursos dos inimigos. A Cavalaria Pesada, os arqueiros e a infantaria surgiram a partir de inovações tecnológicas na Idade Média, bem como o uso de mosquetes na idade moderna e o papel da engenharia na guerra de trincheiras, decisiva na Primeira Guerra Mundial. Não seria agora, com um avanço tecnológico acelerado a partir das tecnologias informacionais e da robótica que isso não se verificaria no jeito de fazer guerra.
Destaco que a recente digitalização das ações militares, que envolve a combinação de redes de computadores, sistemas de armamentos de combate a distância altamente precisos e pessoal altamente qualificado, configura o que os estudiosos da guerra convencionaram chamar de Guerra de Quarta Geração, ou G4G. Portanto, guerra e tecnologia são duas dimensões inseparáveis.
Apesar dessas profundas mudanças, há certos aspectos do combate humano que a tecnologia ainda não pode substituir, nem mesmo replicar completamente. Clausewitz enfatizava a importância da tomada de decisão e do juízo dos comandantes. Embora não concorde completamente com sua ideia de guerra como continuidade da política, ele mostrou que a guerra continua sendo uma expressão da realidade social e política. As decisões sobre o uso de tecnologias militares estão indissociavelmente ligadas às transformações políticas e sociais, refletindo as condições políticas de uma sociedade. Além desse aspecto, elementos psicológicos e morais, como a motivação, a moral das tropas e a capacidade de adaptação, são áreas em que a intervenção humana ainda é essencial. O fator humano ainda é decisivo na guerra moderna.
O POVO+ - Até que ponto o avanço de tecnologias como drones, cães-robôs e sistemas de combate cibernético pode tornar o soldado humano obsoleto nos conflitos futuros?
Gustavo Guerreiro: O avanço dessas tecnologias como drones, cães-robôs e sistemas de combate cibernético tem justamente esse objetivo de reduzir a necessidade de soldados humanos em conflitos, mas não os tornará completamente obsoletos. O uso dessas tecnologias em ações militares permite executar operações de alta precisão e menor risco para os combatentes humanos. E embora tenha como um dos objetivos promover maior eficiência e segurança nas missões, sua tarefa principal é reduzir os custos políticos e econômicos da guerra.
Em 2010, escrevi um artigo com o professor Manuel Domingos na Revista Tensões Mundiais, intitulado “O encolhimento dos exércitos”, que trata justamente dessa dimensão da substituição do elemento humano pelos aparatos tecnológicos. (Clique aqui para acessar). Uma das nossas observações era de que as baixas (mortes de soldados) nas guerras no Iraque e Afeganistão tinham um dividendo político interno muito forte. Muitas famílias que enviaram seus filhos, pais e maridos como heróis nacionais recebiam caixões de volta. Isso era avassalador para a imagem do governo perante a opinião pública.
Além disso, os maiores gastos militares com salários, pensões e assistência médica e psicológica representavam grande parte do orçamento das forças armadas dos EUA, país com o maior gasto militar do mundo. A retirada do elemento humano é uma necessidade estratégica, mas sobretudo política e econômica.
No entanto, há aspectos do combate humano que a tecnologia ainda não pode substituir. A tomada de decisão em situações complexas, a liderança em campo, a capacidade de adaptação a circunstâncias imprevistas e a manutenção da moral das tropas são áreas onde a atuação humana continua sendo fundamental. Como disse antes, a guerra é uma expressão social e política, onde a presença e o julgamento humano são indispensáveis para a condução e resolução dos conflitos.
O POVO+ - Considerando o papel crescente da inteligência artificial e da automação nas guerras, quais são os principais desafios éticos e morais que devemos enfrentar ao integrar essas tecnologias nos conflitos armados?
Gustavo Guerreiro: A guerra se constitui de aspectos culturais, sociais, psicológicos, políticos e econômicos que não são completamente capturados pelos avanços tecnológicos. Devemos entender a guerra como um fenômeno em si mesmo, com sua própria lógica e dinâmica. Isso inclui considerar os impactos humanitários, as transformações sociais que ela provoca e as motivações variadas que podem não ser diretamente políticas, como questões étnicas, religiosas ou econômicas.
O perigo de se “terceirizar” a guerra a ponto de colocar cada vez mais decisões nas mãos de sistemas de inteligência artificial (que eu não acredito que sejam realmente inteligentes) reside em desumanizar a guerra ou determinados conflitos mais frequentes e prolongados. Operadores e comandantes que colocam esses sistemas em ação podem se distanciar emocionalmente das consequências de suas ações.
A própria sociedade pode perceber a guerra de forma menos crítica e dramática. A competição tecnológica pode levar a uma nova corrida armamentista e à proliferação de IA para grupos não paraestatais. Penso que o Direito Internacional Humanitário precisa se debruçar sobre essas questões no sentido de discutir novas normas para acompanhar essas transformações.
O POVO+ - O senhor acredita que a dependência de tecnologias avançadas nas guerras futuras poderá levar a uma nova forma de desigualdade entre nações, favorecendo aqueles com maior capacidade tecnológica? Como o Brasil se posiciona nesse cenário tecnológico militar?
Gustavo Guerreiro: Certamente. A dependência de tecnologias avançadas nas guerras levará a uma nova forma de desigualdade entre nações. Países produtores de tecnologias de ponta, como drones, sistemas de combate cibernético e inteligência artificial, terão uma grande vantagem em termos de capacidade de defesa e projeção de seu poder militar. Isso criará uma disparidade tecnológica que resultará em uma concentração de poder em poucas nações tecnologicamente avançadas, exacerbando a desigualdade global. Acredito que isso deva também resultar em novos desequilíbrios geopolíticos.
Geralmente, a transferência de tecnologia militar vem acompanhada da doutrina que o país produtor e fornecedor dessa tecnologia em seu pacote. Devemos entender a “doutrina” como a definição da finalidade da Força Armada, sua organização, a maneira de formar e treinar os combatentes, as regras hierárquicas e disciplinares corporativas, bem como as relações entre a corporação militar e a sociedade. A unidade de doutrina é uma peça-chave para a eficácia militar. O poderio militar está estreitamente ligado à capacitação científica, tecnológica e industrial, o que envolve a renovação permanente de armas, equipamentos, meios de locomoção, instrumentos de observação, serviços médicos e possibilidades logísticas. Nesse sentido, a modernização das Forças Armadas em países com pouca capacidade científica, tecnológica e industrial representa uma forma dissimulada e eficaz de dominação das potências detentoras de tecnologias sensíveis.
No contexto brasileiro, o país enfrenta alguns desafios e oportunidades em relação à incorporação de tecnologias avançadas na defesa militar. Entre os desafios, destaco as limitações orçamentárias. Apesar de ter cerca de 350 mil militares, o país destina apenas 7% do orçamento de defesa para investimentos em tecnologia, muito abaixo dos mais de 20% em outros países. Isso resulta na baixa capacidade militar brasileira em relação a potências como Estados Unidos, Rússia, China e Israel, que estão na vanguarda do desenvolvimento de tecnologias como drones, satélites e mísseis guiados. Não há como desenvolver ciência e tecnologia sem uma consistente base industrial voltada para a defesa. A indústria de defesa brasileira está fragilizada, precisando de uma política de compras regulares. O país não tem capacidade de compra e manutenção das suas indústrias, o que gera problemas para a indústria, como a Avibras, que entrou com pedido de recuperação judicial.
Como oportunidade, eu destacaria algumas parcerias estratégicas com países tecnologicamente avançados e no âmbito dos BRICS, que podem facilitar a transferência de tecnologia e o desenvolvimento conjunto de novos sistemas de defesa. Recentemente o Brasil inaugurou uma nova sede do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) em Fortaleza. Focar em pesquisa e desenvolvimento em áreas específicas onde o Brasil possui vantagens competitivas, como tecnologia aeroespacial de vigilância na Amazônia, pode fortalecer a capacidade tecnológica para a defesa nacional. A indústria aeronáutica brasileira, com destaque para a Embraer, é uma das mais avançadas do mundo, projetando e produzindo aeronaves civis e militares. Isso representa uma vantagem tecnológica para o país.
O POVO+ - Diante das rápidas inovações no campo militar, quais são as implicações para a formação e treinamento dos soldados do futuro? Que habilidades e conhecimentos serão essenciais para os militares brasileiros para se adaptarem a esse novo cenário?
Gustavo Guerreiro: As inovações tecnológicas terão reflexos significativos na formação dos soldados, que precisarão aprender a operar, manter e controlar drones, sistemas autônomos e equipamentos cibernéticos. A crescente importância do combate cibernético vai exigir habilidades em cibersegurança e defesa cibernética cada vez maiores. Os soldados deverão ser capazes de proteger redes, prevenir ataques cibernéticos e responder a incidentes de segurança digital.
Para os militares brasileiros, certas habilidades e conhecimentos tornam-se essenciais à medida que os sistemas aeroespacial e cibernético ganharem mais espaço nos combates armados. A competência tecnológica está no topo da lista. Mas não basta apenas manusear equipamentos de ponta; é crucial entender seus princípios e mecanismos de funcionamento para uma operação eficiente.
Creio que os conhecimentos em cibersegurança e defesa cibernética são igualmente vitais, sobretudo para proteger infraestruturas críticas e saber responder a ameaças digitais. Tudo isso exige uma formação robusta em Ciencia, Tecnologia e Inovação, por meio de cursos especializados e simulações de ataques cibernéticos.
Outro aspecto importante é a adaptação dos comandantes militares às novas tecnologias. Com o avanço desses sistemas, eles precisam estar preparados para gerir operações que envolvam essas tecnologias, interpretando-as estrategicamente em ações de combate.
Além disso, destaco a capacidade de operar conjuntamente e a interoperabilidade. É essencial que os militares estejam aptos a colaborar eficazmente em operações conjuntas, tanto nacionais quanto internacionais, por meio de plataformas e sistemas que funcionem de maneira integrada. Nesse sentido, o papel da diplomacia é relevante. A análise de dados também é crucial. O processo de coleta e análise de dados é central nas operações militares contemporâneas. Acredito que aqueles que dominam essas técnicas têm uma vantagem estratégica significativa.