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Rebeca Andrade acende a chama do futuro da ginástica do Brasil
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Rebeca Andrade acende a chama do futuro da ginástica do Brasil

Aos 25, maior medalhista olímpica da história do País já inspira meninas e meninos
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A brasileira Rebeca Andrade se sagrou campeã olímpica do salto em Paris; ela é a maior medalhista da história do esporte brasileiro (Foto: Gabriel BOUYS / AFP)
Foto: Gabriel BOUYS / AFP A brasileira Rebeca Andrade se sagrou campeã olímpica do salto em Paris; ela é a maior medalhista da história do esporte brasileiro

"Cláudia Magalhães inspirava Luísa Parente que inspirava Daniele Hypólito que inspirava Daiane dos Santos que inspirava Rebeca Andrade que inspirava a próxima geração. Cláudia foi para Moscou-1980, Luísa para Seul-1988 e Barcelona-1992, Daniele sobreviveu a um desastre e foi a primeira medalhista mundial da ginástica brasileira, Daiane trouxe o primeiro ouro para o Brasil, Rebeca tem seis pódios olímpicos e derrotou a imbatível Simone Biles, que não tinha entrado na história".

Vendo pela TV, as crianças do Flamengo tentavam imitar a rotina artística de Rebeca Andrade, colega de clube. Uma menina de 25 anos, pouco mais velha que as mais experientes entre as jovens futuras ginastas. Um minuto e meio, uma eternidade para a juventude sempre vidrada em telas. Mas um ídolo, uma inspiração, brilha mais que a necessidade de dissipar energia acumulada.

Anos antes era Rebeca quem não conseguia desgrudar os olhos da ídolo. Daiane dos Santos, a primeira ginasta brasileira a conquistar um ouro em Mundiais — e a primeira negra a conquistar tal feito no mundo inteiro —, visitava o centro de treinamento onde a pequena futura campeão ensaiava o que viria a ser Yurchenkos, Chengs e Amanares.

O encadeamento de inspirações ilustra o caminho da ginástica artística no Brasil. Uma jornada que serve de referência para os sempre negligenciados esportes olímpicos. Das pioneiras veio o interesse, do interesse veio o investimento, do investimento vieram os primeiros resultados, e junto deles a vontade de vencer mais. Esporte de alto rendimento serve para isto. Inspirar quem vem depois.

É também uma menina preta, míope, de voz fina, sorriso fácil e uma blindagem psicológica pouco coum. Ela não vê competição — tanto pela vista limitada quanto pelo preparo mental para distraí-la das pressões do esporte de alto rendimento.

A resiliência e a leveza escondem a força de alguém capaz de superar três cirurgias de ligamento no joelho. Recuperações excruciantes seguidas de novas lesões, num ciclo cruel que lembra que esporte nem sempre significa saúde física. 

Em 2016, no Rio de Janeiro, ela era uma menina de 17 anos no país da Olimpíada. Viu Simone Biles fazer história com quatro ouros numa única edição dos Jogos. Quatro anos depois, conquistou duas medalhas em provas que a futura rival abdicara de competir ante a pressão galopante na Tóquio em tempos de Covid-19.

Paris foi a passarela para o desfile de duas das maiores da história. Biles era favorita para vencer as quatro provas que já vencera no Rio de Janeiro. E assim foi, até que não foi mais.

Num gingado que apenas brasileiras são capazes de reproduzir, ela iniciou o solo. Veio um mortal esticado, seguido de uma pirueta, culminando num mortal duplo com giro. Vem então um Tsukahara esticado — mortal duplo e pirueta com as pernas relaxadas. Pode soltar o fôlego, ela acertou de novo.

Quando a música deixa de ser Beyoncé e passa para Anitta, Rebeca corre para uma rondada flic que se transforma em um duplo mortal esticado. Nem um passo a mais do que o necessário.

Sorriso no rosto, falta só a acrobacia final. O perfeito duplo mortal carpado.

Antes de Daiane e de Daniele, era uma palavra que soava estrangeira. Mesmo hoje, seis medalhas olímpicas da ginástica artística feminina depois, o sentido ainda escapa à maioria. Ao contrário do impacto da beleza estética da acrobacia. Essa inspira.

Não é o primeiro, nem será o último talento único em um esporte eclipsado pelo futebol no Brasil. Houve Ayrton Senna, Nelson Piquet e Emerson Fittipaldi na Fórmula 1. Gustavo Kuerten no tênis. Torben Grael, Robert Scheidt, na vela. As gerações de prata e de ouro dos vôleis masculinos e femininos. Os judocas olímpicos, de Chiaki Ishii a Beatriz Souza. Os campeões mundiais do basquete — Wlamir, Amaury, Hortência, Paula. A tempestade brasileira do surfe, que trovejou depois de talentos do skate como Bob Burnquist e Mineirinho.

Porque um país continental há de ter talentos que se sobressaem à revelia do quanto foi investido neles. Rebeca não é um raio que caiu aleatoriamente no território nacional. Foi alguém que surgiu porque se criaram as oportunidades para isso.

Hoje, o esporte olímpico brasileiro condiz mais com a imagem média da população nacional. Até segunda-feira, os maiores medalhistas do País eram dois velejadores de sobrenome estrangeiro. Talentos enormes advindos de um contexto de privilégio. Rebeca Andrade nasce e cresce da iniciativa pública, dos fomentos ao esporte, do desejo coletivo de transformar o país numa potência.

Rebeca Andrade não é um fim. Ou pelo menos o Brasil não pode deixar que ela seja. É um talento lapidado, capaz de carregar a chama para uma nova geração de campeãs.

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