Na corrida da vida, com o passar do tempo, o lúdico tão incentivado na infância e a vida profissional muitas vezes se afastam, afinal, brincadeira é só brincadeira. Há, no entanto, quem entrelace os dois caminhos ao invés de separá-los, transformando as atividades da infância em carreira. E em bronze, como é o caso do cearense Henrique Barreto.
Natural de Jaguaretama, o jovem de 24 anos é atleta profissional de atletismo e foi um dos guias de Yeltsin Jacques, que conquistou uma medalha de bronze nos 5.000m — em que Henrique esteve presente — e ouro nos 1.500m do atletismo nas Paralimpíadas de Paris-2024 no T11, classe para cegos.
Em conversa com O POVO, o atleta falou sobre o início do gosto por corrida em Jaguaretama, a vinda até Fortaleza em busca da transformação do sonho em carreira nas pistas e salientou a importância do apoio e incentivo aos esportes, especialmente para disciplinas sub-representadas como atletismo e os esportes paralímpicos.
O POVO: Na infância, no geral, as pessoas são estimuladas a praticar e consumir futebol. Dessa forma, como o atletismo entrou na sua vida?
Henrique Barreto: O futebol sempre esteve presente. É o primeiro esporte a ser apresentado para crianças e jovens, assim como para mim. O atletismo entrou na minha vida aos 12 anos através de uns campeonatos que tinham, escolares. Nessas corridas das escolas, toda vida eu ficava pra trás, os grandes ganhavam. Eu era pequeno, não tinha noção de nada de treino, mas eu consegui. Tentava treinar, fazer qualquer coisa e dizia que eu brincava de treinar de verdade e comecei a me destacar lá na cidade.
Teve algumas competições dentro do colégio, eu estudei no fundamental no colégio Maria Benilde e no ensino médio na escola Padre José Augusto Régis Alves, e enquanto eu tinha entre 15 e 16 anos e eu já comecei a me destacar ganhando nessas competições da escola. Um dia, teve uma uma fase municipal de uma competição que era 5 quilômetros e foi onde eu comecei a correr essas provas de rua. Eu ganhei também.
Desde então, surgiram outros campeonatos, minha equipe, de onde eu morava em Jaguaretama, começou a se desenvolver através do esporte, do atletismo, e eu fui me encaixando no meio.
Hoje, graças a Deus, sou atleta profissional de atletismo. Especialista nas provas de 800 e 1.500 metros, pois foi onde o meu antigo treinador, Antonio Nonato, me apresentou através de outro campeonato lá do Interior também, que era a Copa do Vale. Foi onde eu entrei. Nessas duas provas, tanto no 800 como no de 1.500, eu ganhei. Desde então, eu comecei a me especializar e até hoje. Já consegui alguns bons títulos.
OP: A corrida de rua está na moda atualmente, mas o atletismo algum tempo atrás não era tão popular, embora as pessoas gostem de acompanhar em Olimpíadas e Paralimpíadas. Por conta disso, você sofreu no início com alguma falta de apoio?
Henrique: No começo foi bem difícil. Eu sou do Interior e lá esse preconceito rola muito. Tipo, se você correr lá você é um doido, né? Eu fui chamado bastante de doido. Então tinha esse preconceito. Com 16 para 17 anos, eu já tinha competido torneios, mas mesmo assim sofria com falta de apoio total. Escutava coisas como “Ah, esse esporte não vai dar futuro” e não tinha tanto incentivo.
Quando os resultados foram aparecendo, a conversa mudou. Hoje eu sou referência lá para minha cidade e para minha escola também. Tem vários projetos lá do atletismo que estão se desenvolvendo através do meu começo e disso eu me orgulho bastante.
Quando eu saí lá do Interior, de Jaguaretama, com 18 anos, eu vim embora para Fortaleza. Foi um período muito difícil, pois tinha que trabalhar, estudar e conciliar treino. Tinha dias que não dava. Às vezes, eu chegava 12 horas da noite em casa e acordava 3 horas da madrugada e virava o dia. Eu trabalhava lá nas feiras livres lá com meu tio e me virava, mas nunca passou na minha cabeça parar de correr. Sempre tava ali com aquela prioridade. Treinava de madrugada, no sol, o que tivesse eu estava lá treinando.
Recebi algumas oportunidades boas no começo, da Unifor, mas tinha medo, pois eu precisava me sustentar, trabalhar e não tinha de onde tirar o sustento. Hoje eu sou atleta de lá. Tenho ao meu lado minha treinadora, Sonia Ficagna, e ela me ofereceu outra oportunidade. Foi quando eu saí de uma empresa que eu trabalhava e me dediquei ao meu rendimento, meus estudos e entrei no profissional e foquei nisso. Desde então, os resultados foram surgindo.
Mas no começo, em geral, não houve apoio. Foi muito pouco. É diferente de quando eu comecei até hoje. A galera que tá começando agora tem um apoio, tem um incentivo, tem quem leve eles para competição, um treinador ali perto. Agora, na minha cidade, vão fazer uma pista de atletismo. Isso é muito importante para a gente. Uma referência e a gente se vê de referência. Para mim, é algo muito bom.
OP: Como aconteceu a transição de uma “brincadeira” para uma carreira em si? E o que exatamente te fez seguir na busca por essa carreira?
Henrique: Meu primeiro título foi na corrida de rua, lá na cidade, e depois foi a Copa do Vale, disputada entre as regiões do Vale do Jaguaribe. Eu não tive nenhuma oportunidade de competir em nenhum campeonato menor como sub-18 ou sub-23. Me jogaram logo no campeonato adulto. Nele, eu fui terceiro lugar nos 1.500 metros. Essa competição aconteceu no Centro de Formação Olímpica (CFO). Corri uma marca não muito expressiva, mas boa para minha idade e eu já estava brigando ali com os com os adultos. Já fui logo para a "peia", como diz (risos). Isso me incentivou.
Dentro disso, hoje eu já tenho oito títulos de campeão cearense, dois do Norte-Nordeste e o Brasileiro Universitário, o principal. Ano passado eu fui o quarto colocado no Troféu Brasil, que é a principal competição da América Latina. Tive uma convocação pro Mundial, que foi na China, e terminei em oitavo na minha bateria. É uma competição fora do normal, que só perde para as Olimpíadas. Foi algo muito acima. Dentro de um ano, tive vitória para cima de vitória. Esse ano, além das Paralimpíadas, também tivemos convocação para o Mundial em Kobe, no Japão, como guia.
OP: Entre os títulos que você ganhou até hoje e pódios conquistados, qual considera o mais marcante?
Henrique: O pódio mais marcante foi, na verdade, a conquista de duas medalhas. Uma delas foi o meu primeiro 800m, onde eu fiquei em primeiro. E a outra foi nos Jogos Universitários Brasileiros (JUBs), em Brasília. Nele eu passei quatro anos tentando entrar em alguma faculdade, recebi muitos nãos, de muitos treinadores, e a Sônia me abraçou. Em quatro anos, chegar ali e medalhar, justo no meu primeiro JUBs, ficou na minha cabeça.
Eu entrei na prova mentalizando “Aqui não tem ninguém, só tem eu, é meu” e assim foi. Entrei na prova liderando, do começo ao fim, e a gente foi campeão. Na hora que terminou ali, eu saí gritando e já sabendo que ia ser convocado para ir para a China. Foi muito emocionante. Nesse dia eu chorei.
OP: No meio da sua história com o atletismo, como você foi parar no paratletismo como guia do Yeltsin Jacques. Como isso aconteceu?
Henrique: Foi alguém que me indicou (risos). Todo ano tem uma competição que acontece em Bragança Paulista, a Copa Brasil de Meio Fundo e Fundo. Os treinadores ficam sabendo os resultados e, no caso, minha treinadora é amiga do treinador dele. Eles conversam bastante, pois há uma série de fatores, não é só ser guia. Tem que ser uma pessoa de confiança.
O Alex Lopes, treinador do Yeltsin, perguntou se eu tinha disponibilidade dentro dos meus resultados. Ele viu que eu era um atleta que teria a mesma passada e que teria a capacidade de guiar em relação ao tempo. No atletismo paralímpico, a gente precisa ter a mesma velocidade ou estar melhor que o próprio atleta.
Ela falou dos meus resultados e ela me destacou que era uma oportunidade, uma experiência e a gente conversou bem, pois eu poderia estar perdendo no convencional e ganhando no paralímpico. Nós colocamos na balança e a gente resolveu ter essa experiência.
Atualmente tá com seis meses que eu tô fora de casa. Tava em Campo Grande na preparação, agora esses 25 dias aqui em Paris. Esse período em Campo Grande foi só a adaptação, muito treino, muito trabalho duro para a gente conseguir chegar aqui bem, mas valeu a pena.
OP: Ser um atleta-guia é uma experiência diferente do comum. Como funciona a comunicação entre atleta-guia e atleta paralímpico, na pré-prova e durante a prova?
Henrique: Yeltsin é um cara que entende da prova, tem um currículo de competição assim como eu, e a gente combina uma estratégia antes da hora da competição. Um exemplo foi nos 5.000 metros, onde rolou o bronze paralímpico. A gente tinha uma estratégia e ela foi feita. Erramos um pouco só no final.
Mas traçamos uma estratégia para estar executando na prova. Dessa vez, eu tinha que segurar a volta, não sair muito rápido, pois a gente poderia estar desgastando ali sem perda de tempo, então a gente tentou segurar o máximo. Sem queda, sem trombar em ninguém, tentamos correr o mais alinhado possível e manter o ritmo. E foi o que mais importou para essa medalha. A gente manteve um ritmo ali no começo e o outro guia, Guilherme, concretizou a prova.
A gente sempre tenta combinar antes. Tenta ver o que pode acontecer, o que não pode, o que deve acontecer, e já traçamos, tipo, uns quatro planos: A, B, C, D e E na hora da prova. A gente vai se falando, mas o que é importante, por exemplo, é guiar. A cada 200 metros eu gritava “Volta” e isso ajudava ele antes de eu passar minha guia para outro guia. Eu tinha que falar a distância dele do primeiro até o último, se ele tava no meio, quem tava na frente, quem vinha gente atrás. Ele não enxerga e a gente é o olho dele, então ele vai ter que escutar e a gente tá ali pra tá falando.
OP: Como funciona a ambientação de vocês antes das provas em relação à pista, curvas e etc. Vocês contam por número de passadas, metros ou outra forma?
HB: A questão da passada, a gente corre igual. A passada que ele dá precisa ser a minha passada. Achar uma atleta que tenha essa característica é muito difícil, então o treinador dele me escolheu justamente por isso também. Só que, no caso, a gente tem que estar um pouquinho atrás. Não pode estar nem na frente, nem puxando o atleta. A gente tem que estar um pouquinho atrás, mas tem que estar com o mesmo número de passada. Em relação a curva, é a tangente. Ele passa e depois a gente. A gente vai percebendo isso no ombro, com movimento de braço e o movimento de perna lado a lado, sincronizado.
OP: Ao lado do Yeltsin, você conquistou uma medalha de bronze na semana passada. Qual a sensação dessa conquista sendo a pessoa que está ali literalmente ao lado do atleta durante toda a preparação e durante todo o trajeto até o pódio?
HB: Para mim foi motivo de muita felicidade. Eu costumo dizer que, quando a gente entra na pista, ali é a parte mais fácil. Difícil é o treinamento. Foi uma série de adaptações, de treino, pois o dele era totalmente diferente do meu. Convalescer foi muito difícil, pois (tive uma) lesão que eu nunca tinha tido por conta da guia. A parte da competição foi mais tranquila.
Quando a gente passou a linha de chegada, ali, o que tinha era gritar, comemorar, sentimento de dever cumprido, de que fiz minha parte, e todos vieram dar parabéns. É algo muito gratificante para mim. É estimulante para estar ainda continuando nesse esporte vendo ele tendo essa experiência de vida profissional de atleta e voltar levando no meu currículo algo que tipo. Só quem viveu vai saber como é passar isso.
Futuramente vou ser um profissional de educação física e vou poder passar isso dentro da sala de aula, mas não tem como expressar essa experiência. Não é só ser atleta, tem que ser humano, pessoa. E é uma experiência que poucos vão ter. Aquele estádio ali… Só gritando para expressar a comemoração mesmo.
OP: Conquistar uma medalha na Paralimpíada pode ser considerado o ápice na vida de um atleta? A visibilidade e a sensação podem ser as mesmas comparadas a ganhar um campeonato mundial?
Henrique: Pode ser e pode não ser. Aqui é um conjunto, pois estou como atleta-guia, auxiliando ele. Queira que não, título vem, mas no convencional isso é fora da realidade, algo bem mais forte. Eu já vou voltar para Fortaleza pensando no próximo ano, quando vai ser o Mundial em Tóquio. A gente vai estar procurando investimento para fazer e isso, com a experiência que eu tô pegando aqui, eu já sei o que precisa ser investido.
Acredito que para chegar (na conquista de uma medalha) no convencional, é algo mais longe da minha realidade, mas que não é impossível. Eu vou estar esse ano e o próximo lutando pra pra tá chegando no Mundial convencional em Tóquio.
Como eu já representei a seleção brasileira no universitário, sei que não é fácil, mas representar a seleção brasileira aqui também não tira o mérito, porque o treinamento para quem corre o que ele correu é difícil. Em treino convencional, hoje, no Ceará, são poucas pessoas que correm tudo isso. Não é fácil. O que a gente fez na guia, hoje, não tem no Ceará, então é algo gratificante, difícil de chegar, então não tem essa. Quem chega aqui é para lutar, dar o sangue da melhor forma que pode.
OP: Na sua visão, qual a importância do incentivo ao esporte, principalmente ao esporte paralímpico e também a esportes como o atletismo?
Henrique: O incentivo é crucial. Da onde eu venho, era muito difícil. Eu comecei a correr de pés descalços. Não tinha conhecimento em nada. Eu treinava por conta própria, por acreditar, e eu creio que se tivesse alguém ali me dando instrução, um direcionamento, eu poderia já ter alcançado mais ou estaria bem melhor em termos de rendimento. Mas não me culpo pelo que passou. Já passou e eu agradeço muito ter passado por isso.
Para essa garotada que está vindo, é importante mostrar o esporte, pois ainda temos muitas crianças na rua, sem ter um norte, e o esporte dá futuro. Vai depender de você, do seu querer, mas ele pode te trazer renda, estudo. Hoje, depois de quatro anos, eu tô nas melhores faculdades, em Fortaleza, e eu só tenho a agradecer a galera lá que me abraça. Você chega, é visto, mas precisa tratar como um trabalho qualquer, que você precisa se dedicar, pois abre portas.
Também é importante, falando de Fortaleza, bons locais. Falando da cidade, a gente sofre muito com pistas. Nós, atletas da cidade, íamos procurar uma forma, sem prejudicar ninguém, de se ajudar a propor um espaço para a gente, pois com mais espaços desses temos como conseguir mais resultados. É onde podemos nos preparar para alcançar bolsas de estudo e financeiras. É apresentando esses esportes para as nossas crianças que poderemos apresentar nosso talento ao mundo.