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"Precisamos de um novo modelo de relação com o mundo"
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"Precisamos de um novo modelo de relação com o mundo"

Sônia Guajajara, primeira ministra dos povos indígenas do Brasil, faz balanço sobre sua atuação, dificuldades enfrentadas e acordos com os estados, incluindo o Ceará
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Fortaleza- CE, Brasil, 05-02-25: Ministra Sônia Guajajara visita o Ceará e participa de evento na Secretaria de Desenvolvimento Agrário. (Fotos: Lorena Louise / Especial para O POVO) (Foto: Lorena Louise/Especial para O POVO)
Foto: Lorena Louise/Especial para O POVO Fortaleza- CE, Brasil, 05-02-25: Ministra Sônia Guajajara visita o Ceará e participa de evento na Secretaria de Desenvolvimento Agrário. (Fotos: Lorena Louise / Especial para O POVO)

Em toda sua história, o Brasil viveu imerso em uma ironia: nunca teve um ministério exclusivo aos povos indígenas, habitantes originários do País. Isso mudou apenas em janeiro de 2023, quando o presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT), em seu terceiro governo, criou o primeiro órgão do tipo e deu a titularidade do mesmo a Sônia Guajajara, ativista e forte liderança feminina.

Oriunda do povo Guajajara/Tenetehára, a maranhense assumiu o desafio de levar a política indigenista para dentro do Executivo depois da mesma passar por um apagamento na gestão anterior, com órgãos como a Fundação Nacional do Índio (Funai) chegando a perder atribuições e a ter poderes reduzidos.

Representando as 305 etnias brasileiras existentes, a primeira titular do Ministério dos Povos Indígenas tem driblado as dificuldades encontradas e conseguido executar ações importantes para fazer pautas como a ampliação das demarcações de Terras Indígenas (TIs) e as desintrusões de territórios avançarem.

Na primeira semana deste mês, Sônia esteve no Ceará para participar de um evento do Instituto do Desenvolvimento Agrário (Idace), época em que conversou com O POVO e fez um balanço da sua gestão até aqui. Ministra também destacou a parceria do órgão com o estado cearense e refletiu sobre um "futuro ancestral", pensado a partir de um presente onde mundo e habitantes cultivam uma nova relação. 

O POVO - A senhora começou a gestão falando que teria uma atuação inicialmente mais de articulação do que de execução, em razão do orçamento. Depois de dois anos à frente do Ministério dos Povos Indígenas, como avalia que tem sido seu mandato?

Sônia Guajajara - O balanço é extremamente positivo. Além de inaugurar a presença indígena no Poder Executivo por meio da criação do Ministério dos Povos Indígenas na Esplanada, o que permite a nossa incidência dentro do governo federal em temas de relevância e projetos para melhorar a vida dos indígenas com nosso olhar, a política indigenista foi retomada após o abandono da gestão passada.

Com uma série de articulações, conseguimos avançar muito numa pauta que estava, infelizmente, paralisada. Com o direito territorial indígena como meta prioritária, ampliamos as demarcações de Terras Indígenas (TIs) e a emissão de portarias declaratórias, assim como iniciamos desintrusões de territórios. Essas ações tiveram destaque nos primeiros dois anos da gestão indígena. Além disso, garantimos na gestão pública federal a premissa de que a agenda indígena é um tema transversal que precisa ser tratado com medidas concretas por diversos ministérios, com orçamento específico.

Em apenas dois anos de Ministério, já foram homologadas 13 TIs, número superior às 11 homologações alcançadas na década anterior à criação da pasta. Além das novas homologações, também avançamos na promoção dos direitos territoriais indígenas por meio da assinatura de 11 portarias declaratórias pelo Ministério da Justiça, em articulação com o MPI. Antes disso, foram seis anos sem nenhuma portaria declaratória assinada.

Também estamos realizando um esforço intensivo para a promoção do direito ao usufruto exclusivo de seus territórios pelos povos indígenas, como dita a Constituição. Já concluímos quatro desintrusões, com a retirada de invasores e de atividades ilegais dos territórios indígenas (TIs Alto do Rio Guamá, Apyterewa, Trincheira do Bacajá e Karipuna). Duas outras desintrusões continuam em curso, na TI Munduruku, no Pará; e no território Yanomami, onde iniciamos a primeira política permanente de presença estatal no território, com a implementação da Casa de Governo em Boa Vista.

Neste território, os intensos esforços do governo federal frente à crise humanitária que se agravou entre 2019 e 2022 entre a população Yanomami, marcaram esse período. Unimos as forças entre vários órgãos governamentais para combater a fome, aprimorar condições sanitárias, restabelecer atendimento de saúde, combater o extrativismo ilegal e praticamente zerar a abertura de novos garimpos.

Em janeiro, completamos dois anos de ações articuladas que garantiram impactos expressivos na melhoria da segurança alimentar da população e da qualidade de vida dos indígenas. As mortes por desnutrição caíram 68% no primeiro semestre de 2024 em comparação ao mesmo período do ano anterior.

Ainda na atuação do MPI, o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) foi restaurado, importante instrumento de participação social indígena nas políticas indigenistas, um espaço de construção paritária entre movimento indígena e governo federal.

Esses resultados demonstram o nosso compromisso com os povos indígenas e são resultados do trabalho transversal realizado pelo MPI junto a outros ministérios e órgãos para a coordenação de programas, medidas e ações contínuas e a longo prazo. A questão indígena no Brasil não se restringe ao MPI e a responsabilidade vem sendo compartilhada pelo governo.

OP — Que principais ações foram realizadas pelo Ministério nesse período e quais os desafios que o órgão tem enfrentado para avançar com as pautas? 

Sônia — Sobre as ações do ministério, na primeira resposta trouxe aquelas que mais marcaram esses dois anos de MPI. Ainda assim, a condição dos povos indígenas no Brasil só será plenamente atendida quando o passivo de Terras Indígenas for de fato zerado e quando os territórios indígenas forem de seu usufruto exclusivo, conforme determina a Constituição, em que os povos possam reproduzir seus costumes e exercer o bem-viver.

A derrubada do marco temporal, algo que não possui reconhecimento da comunidade internacional, se faz urgente para encerrar a violência no campo, que foi acirrada em função da lei e acomete diversas populações indígenas pelo país. A lei também traz uma série de retrocessos de um ponto de vista legislativo por ser inconstitucional, conforme o STF determinou.

A sub-representação em espaços de tomada de decisão e de poder dos indígenas precisa ser solucionada, não só com mais representantes indígenas, mas também com espaços como secretarias em municípios e estados, bem como órgãos que permitam a incidência indígena em esferas públicas.

A educação, o saneamento básico e a agricultura familiar também precisam ser aprimorados em todo território nacional para que os indígenas tenham mais dignidade em seus lares e todo o atraso imposto pelo preconceito e abandono resultante da colonização e de governos negligentes seja retratado.

OP — A demarcação de territórios indígenas no Brasil e o combate a atividades ilegais e criminosas nos territórios são compromissos apontados pelo ministério. Como o governo tem atuado nessas questões?

Sônia — O governo tem atuado firme e isso se mostra no número de demarcações já realizadas, além das operações de desintrusão já concluídas ou em andamento, entre outras que irão acontecer. As ações têm como objetivo garantir o direito dos povos indígenas à uma vida digna em seus territórios.

OP — Como tem sido feita a parceria entre o Governo Federal e o Ceará? Que iniciativas avançaram no Estado por meio dessa articulação?

Sônia — A parceria tem trazido excelentes resultados e estamos trabalhando em conjunto com o Governo do Estado do Ceará para resolver essas questões territoriais. Um Acordo de Cooperação Técnica foi assinado em novembro de 2023 entre a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace), a Secretaria Dos Povos Indígenas do Ceará (Sepince), e foi feito com apoio e articulação do Ministério dos Povos Indígenas para concretizar as demarcações.

O objetivo do ACT é promover condições financeiras por parte do estado para que a Funai tenha recursos para realizar as atividades técnicas e a demarcação física das áreas designadas.

Pela primeira vez um governo de estado está fazendo essa cooperação com o governo federal para garantir território, uma iniciativa que demonstra o comprometimento com os direitos dos povos indígenas.

OP — Sobre a Cop 30, há uma movimentação da pasta para levar uma delegação indígena ao evento. Qual a importância da iniciativa, principalmente quanto ao debate sobre a questão climática?

Sônia — O MPI busca fazer a melhor e a maior participação indígena da história na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, uma vez que será realizada no bioma amazônico, o que possibilita uma oportunidade de entendimento da realidade dos povos da floresta. Somos os guardiões da biodiversidade e, por isso, precisamos ser ouvidos em relação às formas como fazemos a gestão ambiental e territorial de nossos territórios.

Todo o planeta já sofre as consequências das mudanças climáticas, a natureza já está em transição. Estamos vivendo uma alternância entre períodos de secas, inundações e queimadas. Esses eventos extremos não são sentidos apenas no Brasil, mas no mundo todo. Este já não é mais um problema do futuro e sim um problema que estamos vivendo no presente. E, por isso, precisamos agir agora.

Nossos modos de vida são baseados no respeito à Mãe Terra, no respeito à natureza a qual pertencemos, e na prevalência dos interesses coletivos em relação aos interesses individuais, no cuidado e na vivência em comunidade. Os nossos modos de vida estão diretamente ligados à relação harmoniosa com o meio ambiente para o uso sustentável. Estudos já comprovaram que proteger os territórios indígenas é uma das formas mais eficientes de conservar a biodiversidade e de enfrentar as mudanças climáticas.

Para citar um mais recente, de acordo com análises do Mapbiomas, por exemplo, em 30 anos, as Terras Indígenas perderam 1,2% de vegetação nativa. Já as áreas privadas, perderam quase 20% durante o mesmo espaço de tempo. Demarcar e proteger os territórios indígenas é o caminho para a garantia do nosso futuro neste planeta.

Para combater todas essas crises, precisamos de um novo modelo de relação com o mundo. E os povos indígenas apontam, há séculos, a partir de suas cosmovisões, alternativas ao modelo de desenvolvimento que temos hoje e que traz tantos danos ao planeta. Por isso, falamos tanto sobre reflorestar mentes. Eu acredito que este é o caminho para a garantia de um futuro mais sustentável e equitativo.

Idace

Ministra esteve no Ceará para participar do evento em comemoração aos 46 anos do Idace, que reuniu autoridades estaduais e povos de diversas etnias.

Demarcação

Antes da criação do Ministério dos Povos Indígenas o Ceará tinha duas terras demarcadas fisicamente. Depois de 2023, após a criação do órgão, houve um avanço e número chegou a cinco. 




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