Há quase 141 anos, em um 25 de março de 1884, o Ceará se tornava a primeira província a abolir a escravidão. Um ano antes, na Vila do Acarape, atual município de Redenção, a 55 km de Fortaleza, os últimos 116 escravizados já tinham sido alforriados.
O Ceará foi a primeira localidade, que hoje chamamos de Estado, do último país da América a acabar com a prática. A classe dominante local não dependia mais economicamente dos escravos e os jangadeiros, com a liderança de Chico da Matilde, o Dragão do Mar, se recusavam a embarcar, no porto de Fortaleza, os escravizados que seriam enviados para outras províncias.
A data, 25 de março, ficou marcada como feriado da Carta Magna. Os rastros da escravidão também permanecem. Neste domingo, tão perto da data, o historiador e professor Hilário Ferreira discute o significado da abolição da escravidão no Ceará. Em entrevista ao O POVO, Hilário cita documentos históricos e aborda a complexidade da abolição para a população negra da época, contrastando a visão da "Terra da Luz" com a persistência da opressão e do racismo mesmo após o fim da escravidão.
Hilário Ferreira -Essa é uma pergunta que se tornaria mais fácil de responder se nós tivéssemos (quando eu falo nós, eu falo de todos nós cearenses) uma educação histórica, e é uma coisa que me preocupa muito. A disciplina de História do Ceará, ela não é obrigatória nas escolas. Não sei você, mas na minha época, 1° grau e 2° grau eu nunca tive aula de História do Ceará.
Para a negrada, para os negros que viveram muito tempo na condição social de escravos, a abolição, o fim da sociedade escravista, gerou na mentalidade deles uma visão de que o Ceará se torna realmente a ‘Terra da Luz’ em um dado momento. Por que em um dado momento? Porque as condições de vida destas pessoas no dia 26, 27, 28, o tratamento que elas vão receber dos brancos vai continuar o mesmo, só quebrar as correntes.
Mesmo assim, elas agora podem optar em não querer trabalhar. E eu digo isso porque tenho um documento que me foi passado, o nome é ocorrência de escravos. O que é incrível nesse relatório é que é um reflexo do pensamento e dos anseios dos brancos daquela época. Ele diz o seguinte: "Depois da abolição, os negros agora não querem trabalhar." Veja bem, depois da abolição, os negros agora não querem trabalhar. Ora, a condição de trabalho que eles viviam era tamanha e opressora que eles resolveram não trabalhar mais para as pessoas que os oprimiam. E é o que vai acontecer com as mulheres negras, elas deixam de ser escravizadas e viram agregadas, sendo que agora o nome muda de escravizada para empregada doméstica.
Tem um censo feito aqui, se não me falha a memória, é de 1897 e é de casa em casa. Aí você encontra lá ‘fulano de tal agregada’, ‘na casa de tal agregada’. Quem são essas agregadas? São as antigas negras escravizadas. Os homens não trabalham, mas elas têm que sustentar a casa e ficam nessa condição. Não só aqui, mas também nas províncias vizinhas. E é o que também fala o documento. O chefe de polícia diz: "Agora o Ceará, a província do Ceará virou terra de açoitamento de escravizados”, ou seja, também para a negrada do Nordeste, próxima à província do Ceará, o Ceará virou a ‘Terra da Luz’.
Então os negros do Piauí, do Maranhão, de Pernambuco, de outras províncias, achavam que, fugindo lá na sua terra e entrando na província do Ceará, estariam livres. Engano deles, porque o próprio chefe de polícia diz: "A gente caça eles e devolve para o seu dono."
No imaginário dessa negrada, esse período se torna um momento de liberdade. No entanto, essa liberdade não existe, eles percebem que vão continuar sendo tratados como coisas. Porque, para a população negra, o 26 foi um dia de continuidade sem a condição de escravos, mas de opressão, de perseguição, de desrespeito e de violência.
Hilário - Nós estamos aqui trabalhando justamente com esse processo. Não libertou e pronto, é um processo mesmo. E quando se fala de um processo, nós estamos falando da resistência negra, estamos falando de uma conjuntura marcada pelo tráfico interno, a venda de pessoas para a região Sudeste, para suprir a falta de mão de obra nas fazendas de café, tanto de São Paulo quanto do Rio de Janeiro, de algumas regiões de Minas Gerais.
E aí acrescentamos uma coisa que vai ocorrer a partir do início da segunda metade do século XIX: as ideias liberais passam a ter mais força. A cidade passa a ter maior visibilidade do que o campo, o comércio começa a despontar de uma forma muito mais forte do que a pecuária. E aí estamos observando uma mudança de mentalidade.
Na cidade, com o desenvolvimento do comércio, vai surgindo uma classe média, surgindo os teatros, grupos literários, isso ocorre em várias cidades e aqui em Fortaleza. Você tem naquela região da Praça do Ferreira os cafés, onde foram criados os grupos literários, uma nova mentalidade surge, e nessa nova mentalidade que a escravidão representava o passado, o atraso. E isso vai mexendo de certa forma com o imaginário dessa população.
Agora é importante colocar que essa mudança não significa radicalmente que estas pessoas passaram a se tornarem antiescravistas.
Muitas delas vão continuar sendo racistas, o que elas não querem ver é justamente o trabalho escravo, mas querem continuar com a sua escrava sendo empregada doméstica. Querem continuar com o seu escravo servindo eles como mordomo. Porque é uma característica daquela época, como ainda é hoje. Você vê alguém que se diz social democrata no Brasil hoje, mas esse social é extremamente apoiador das políticas ditatoriais antidemocráticas. Essas contradições, do ponto de vista de conceitos econômicos, nada mais é do que uma adaptação de um determinado conceito vindo de fora aplicado à realidade local.
Então a cidade vai se modernizando. Por sinal, a iluminação que a que passa a existir na cidade, ela é resultado de todo uma venda de cativos para o Rio de Janeiro, que é o grande responsável pela iluminação da cidade, é um dos maiores traficantes de escravizados, que é o Joaquim da Cunha, que era conhecido como Barão de Mauá do Nordeste, um dos maiores vendedores escravizados para o Rio de Janeiro do Nordeste.
E ele morou ali na rua São Paulo onde hoje é um sobrado enorme, belíssimo, onde hoje é o Bradesco. Acrescente-se que, a cerca de 1877 a 1879, a cidade fica inchada com imigrantes e juntamente com isso, com toda essa loucura, essa mentalidade, as hordas e hordas de escravizados vão passando na rua.
Como é que funcionava essa venda de cativos? Esses seres humanos eram comprados no interior, vinham a pé em caravanas e ficavam descansando em galpões ali na Jacarecanga, era muito semelhante ao tráfico atlântico, depois eram juntados em caravana e iam andando até a praia do Peixe, que é hoje a praia de Iracema. Ficavam todos sentados na areia. Quando vinha, o barco pegava esses cativos e passageiros brancos que iam para o Rio de Janeiro nas cidades litorâneas, muitas delas capitais. Daí passavam pelo Pará, em São Luís, passavam em Fortaleza, depois no Recife, as cidades litorâneas. Neste comércio não existiu um navio negreiro como aquele que foi criado no tráfico atlântico, era um navio mesmo de passageiro.
O barco parava distante e vinham os jangadeiros. Os comerciantes pagavam os jangadeiros para colocar esses negros dentro da jagada e levar até o barco. Muitos, para não dizer a maioria dos jangadeiros, eram negros. Mas por que eles faziam isso? Porque eles não tinham força política, eram negros, trabalhadores pobres que faziam esse trabalho.
Eles encontram em 1881 uma conjuntura que juntou o desejo deles de não levarem, mais um apoio de um grupo de jovens de classe média, que resolvem criar uma sociedade abolicionista, que dá a eles todo um apoio político, mas antes eles não tinham isso.
Com a passagem dessas pessoas no período da seca, vai aumentando uma certa culpa, os preceitos cristãos são questões que fazem com que haja essa mudança e apoie essa mudança.
A maioria das mercadorias, chamadas dentro de uma linguagem da época que estavam sendo vendidas, eram homens principalmente de 14 a 30 anos, era um lucro muito grande. Quase duas vezes por semana ou duas, ou quatro vezes por mês saíam, ali na praia do peixe ou praia do de Iracema, vários cativos embarcados nesses barcos.
Toda essa conjuntura, sentimentos, ideias políticas, situações climáticas levaram a essa mudança. Porque, no fundo, se dependesse da classe dominante, a abolição teria ocorrido, segundo cálculos de alguns historiadores econômicos, lá para 1930.
Porque se nós observarmos todo o processo das leis abolicionistas, há uma tentativa de abolir empurrando com a barriga. Você tem a lei do fim do tráfico, que vai ser um acordo entre Inglaterra e o império: ‘eu reconheço que o Brasil se tornou independente se houver o fim da escravidão’, porque a Inglaterra tava querendo um mercado consumidor. E o que é que o império faz? Aceita. Mas quem mandava politicamente no Brasil era esse grupo que vamos chamar de donos da terra. Eles vão pressionar e não vão aceitar. Tem a lei de 1831, tem o fim do tráfego oficialmente em 1850, mas há dados que tem tráfico até 1856. Tanto que, quando há o fim da sociedade escravista em 1888, no outro ano o império cai. ‘Os latifundiários tiraram o nosso ganha-pão, pois vamos tirar de vocês’.
Hilário - Eu penso que o 25 de março traz um misto de encanto e, ao mesmo tempo também não é algo que tá dentro de um sentimento de festa para a maioria das pessoas. E eu penso que justamente porque a condição de vida da negrada hoje no Ceará não se alterou. Não se alterou. A violência continua, o racismo continua. Mas essa narrativa de uma historiografia oficial que apaga o protagonismo da negrada, ela está presente no imaginário. Todo mundo fala do 25 de março, não só aqui como no Brasil todo. O 25 de março é tão profundo, que Redenção ganhou uma universidade internacional, mas poucas pessoas fazem uma análise crítica, como estamos fazendo, do processo.
Poucas pessoas percebem que a memória da escravidão não é da resistência, é da dor. Todos os museus que têm alguma exposição sobre esse período da abolição, só há instrumentos de tortura. Ninguém fala da resistência negra, porque essa resistência negra foi apagada propositalmente pelos abolicionistas, onde eles se tornam os únicos protagonistas.
O que representa de fato o 25 de março? Representa o último grande feito dos heróis brancos que lutaram pela abolição dos negros. A mensagem que passa é que a abolição no Ceará e no Brasil todo, porque tem a princesa Isabel, é uma dádiva dos brancos, os mais interessados não aparecem. Eu achei muito interessante colocar o Maracatu e o 25 de março juntos. O Maracatu vê um sentimento da população, principalmente da população pobre e negra, e isso nós vemos materializado no carnaval da Domingos Olímpicos, no dia do Maracatu está cheio de gente.
Trazendo o Maracatu para cá, tentam-se fazer uma festa, mesmo assim a cidade, o feriado, que para mim não deveria ser, porque não houve abolição. Não é porque não houve abolição que a gente não discuta. É aquela questão inicial que eu falei: houve abolição? Sim, mas vá ver o que aconteceu no dia 26, e ainda 2 anos depois, em 1886, quando um deputado da assembleia pede um relatório de quantos escravos ainda existiam em milagres. Ainda existiam 500 escravos na cidade de Milagres, na região do Cariri. Por isso eu falo que não houve uma abolição, mas é preciso que a gente discuta isso.
Quem é, e por que sustenta ainda, essa narrativa? Quem ganha com essa narrativa? Nós temos o Palácio da Abolição, nós temos avenida da Abolição, nós temos vários lugares falando sobre abolição, nós temos uma Universidade Internacional para negros por causa da abolição.
Hilário- O próprio João Cordeiro, a rua João Cordeiro. Dez anos depois da abolição, houve um evento e João Cordeiro era o governador. No festejo, estavam vivos o Chico da Matilde, o dragão do mar, e o jangadeiro José Napoleão. Nenhum dos dois foram chamados, só abolicionistas brancos. Este ponto já é um reflexo de que ninguém estava interessado, na verdade, nos escravizados. Estavam interessados na narrativa da luta pela liberdade “dos escravizados”.
Unilab
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira foi criada em 20 de julho de 2010 e tem sede em Redenção
Oficial
O data da Carta Magna foi aprovada como feriado na Assembleia Legislativa em 1º de dezembro de 2011