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Branquinha: a viúva que mantém viva a memória de Zé Maria do Tomé
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Branquinha: a viúva que mantém viva a memória de Zé Maria do Tomé

Em meio ao luto, ela mostra na expressão a certeza de que a única luta que se perde é a que se abandona
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FORTALEZA-CE, BRASIL, 29-01-2025: Visita à cidade de Limoeiro do Norte para entrevistar pessoas sobre a liberação de drones para espalhar agrotóxicos em plantações. (Foto: Júlio Caesar/O Povo)  (Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR FORTALEZA-CE, BRASIL, 29-01-2025: Visita à cidade de Limoeiro do Norte para entrevistar pessoas sobre a liberação de drones para espalhar agrotóxicos em plantações. (Foto: Júlio Caesar/O Povo)

"Eu achava que ele era sozinho, mas por onde a gente passa tem uma semente de Zé Maria"

Maria Lucinda Xavier, 56, mais conhecida como Branquinha, carrega no olhar a dor e a força de quem viu o amor tombar, mas nunca partir.

Viúva de Zé Maria do Tomé, sustenta os filhos, o comércio e a memória de um homem simples que virou mártir. Em meio ao luto, ela transparece na expressão a certeza de que a única luta que se perde é a que se abandona.

No muro em frente de casa, as palavras dele florescem com raiz funda: "Se me matarem, mas vocês continuarem minha luta, morro feliz". Dona Branquinha mira a frase todos os dias, com os pés firmes na terra, sabendo que o vento espalha sementes que jamais serão pulverizadas.

O POVO - Dona Branquinha, eu queria que você falasse um pouco sobre Zé Maria antes de ele entrar nessa luta. Vocês se conheceram, se casaram, construíram uma família, um lar juntos. Mas ele já tinha esses ideais?

Dona Branquinha - Ele já tinha esses ideais, mas ainda não era envolvido com a luta de fato. Ele não saía ainda para essas mobilizações.

Trabalhava como operador de máquina em uma firma e morava em São Paulo. A gente casou em 1989 e eu fui com ele para lá. A gente passou quase um ano, depois veio embora. Eu vim até grávida da Marcinha (Márcia Xavier, a filha mais velha, que hoje é psicóloga).

Aí eu fiquei com a minha família em Tomé e ele continuou viajando até a gente poder construir um barraco pra gente, que justamente é esse canto aqui.

Sempre ele ia e vinha, aí eu tive a Juliany. Quando ele parou de viajar mesmo, a menina já tinha uns 6 anos. Aí quando ele parou foi que começou nessa luta. Muitas vezes eu até discutia com ele, brigava, porque eu tinha muito medo justamente de acontecer o que aconteceu.

Eu achava que ele era sozinho. Zé Maria saía, falava nas rádio, brigava com fulano, discutia com ciclano. Mas ninguém tinha noção que tinha tantas pessoas por trás dele, nos movimentos sociais. E sempre ele dizia que não tava sozinho.

Uma vez eu até disse: Zé Maria, se você ganhar alguma coisa aqui pra comunidade, todo mundo vai aplaudir. Mas se você tiver sozinho apanhando, ninguém vai te socorrer. Ele dizia "é uma missão que eu tenho".

Aí foi se aprofundando, aprofundando, até que chegou no que aconteceu. E no dia que aconteceu ele realmente tava sozinho, né? (Emociona-se)

OP - Meus sentimentos, dona Branquinha.

Dona Branquinha - Depois que ele foi assassinado, foi que a gente descobriu o valor que ele tinha. Eu, como esposa, os meninos como filhos, a gente não tinha noção que ele tinha um conhecimento tão grande. Portanto, hoje eu digo que cada pessoa é uma semente dele. Tá todo mundo junto, de mãos dadas, sempre na mesma luta.

OP - E como foi para continuar a criação dos meninos sozinha?

Dona Branquinha - Muito difícil. Muito mesmo. O mundo parou pra mim naquela hora (quando da notícia da morte). Eu fiquei meia aérea, não lembro de muita coisa. Eu não tive nem tempo de sofrer, desabafar, porque precisava enfrentar essa barra com eles.

A gente não esquece, a gente acostuma a conviver sem aquela pessoa. Mas todo dia que Deus dá, eu me lembro do Zé.

O Gabriel, o mais novo, era muito apegado a ele. Ele era novinho, só tinha 4 anos, Zé Maria amarrava um assento na moto com uma fralda e saía com ele. Ficava deitadinho, bem quietinho, muitas vezes até dormia.

Lucas Gabriel, o filho caçula de Lucinda e Zé Maria, tinha apenas 4 anos quando o crime aconteceu. Aos 7, chegou chorando da escola depois que colegas de sala lhe contaram o que teria acontecido. Somente com 18 anos ele soube detalhes de como ocorreu a morte do pai e participou de audiências sobre o caso junto da mãe e das irmãs.

Até numa das ameaças que ele recebeu, a pessoa disse "você é muito covarde, só anda com uma criancinha na garupa". A criança era justamente o Gabriel, mas ele andava por costume mesmo. Eram muito apegados.

Foi muito difícil, me dava muita pena dele. Mas graças a Deus eu superei, eu consegui criar eles três. A Marcinha já era de maior, estava no segundo semestre da faculdade de psicologia.

Ela quis desistir, eu dei muito conselho e pedi às colegas dela para dar conselho, para ela não desistir. Se ela desistisse era mais difícil, né? Mas graças a Deus ela não desistiu. A Juliany também se formou, é fisioterapeuta. O Gabriel não quis fazer faculdade.

OP - Vocês já tinham esse comércio aqui em frente quando vieram para cá?

Dona Branquinha - Não, quando a gente veio para cá era só uma casinha simples, depois a gente foi reformando. Quando Zé Maria foi assassinado, o comércio tinha uns 6 anos.

Mas aí eu segurei, não deixei a peteca cair e tô levando em frente. É difícil, mas a gente tem fé.

Em frente ao Mercadinho Menino Jesus, que funciona na entrada da casa de dona Branquinha, um muro carrega dizeres de Zé Maria e suas bandeiras de luta. Ao lado, uma árvore pede "paz", "respiração saudável", "água de qualidade", "adubação orgânica", "frutas sem agrotóxicos" e outros. Há também lamentações como "desigualdade social", "violência", "poluição", "carência afetiva", "alcoolismo" e "degradação do meio ambiente".

OP - E quando foi que vocês perceberam os primeiros sinais de que tinha algum problema relacionado aos agrotóxicos?

Dona Branquinha - A Marcinha era mocinha e começou com uma coceira na pele. Ela me mostrou, aí eu levei pro médico. Era até uma médica.

Aí ela passou um remédio e pediu para todo dia lavar as roupas dela, passar o ferro, engomar, porque podia ser alguma bactéria. Mas não melhorava. Zé Maria ficou preocupado e começou a tomar as providências. Ele não se aquietou, foi atrás, foi investigando. Quando viu, tinha relação com os agrotóxicos.

Zé Maria começou a desconfiar de alguma contaminação quando uma médica sugeriu que Márcia tomasse banho com água mineral e ela, então com 9 anos, começou a melhorar da infecção de pele que atingia as partes íntimas. No mesmo período, outras pessoas da comunidade adoeceram e animais apareceram mortos. O agricultor ligou os pontos e chegou até a piscina que abastecia a localidade, que estava contaminada devido à pulverização intensa de agrotóxicos na região.

Ele sozinho foi indo atrás, aí foi se juntando com os movimentos e começou a luta. Que eu acho que não para mais. Tem a semana que a gente faz em homenagem a ele e o encerramento é com a romaria e a missa aqui na comunidade.

OP - E o processo de condenação dos culpados, a senhora acompanhou?

Dona Branquinha - Acompanhei do início ao fim. O menino pegou 16 anos em regime fechado. Ninguém sabe se ele vai cumprir, mas só o fato de ter tido uma justiça, para nós já está de bom tamanho, porque a gente sabe que não ficou impune.

OP - E a senhora percebe agora, então, essa continuidade da memória dele, da importância da existência dele...

Dona Branquinha - Porque a luta continua, né? Foi uma frase que ele disse, "se me matarem e vocês continuarem a minha luta, eu morro feliz". Aí, quer dizer, a gente sempre tá se baseando nessa frase.

Porque a luta continua e é cada vez mais encostando gente, chegando gente. Ninguém nunca desistiu. A união faz a força. São muitos movimentos sociais que não deixaram se apagar a memória dele. Por onde a gente passa tem um Zé Maria ali, tem uma semente dele ali.

Eu só tenho esperança de que essa aprovação seja revogada. A luta agora vai ser nesse caminho, pelo que eu converso com as pessoas. Pressionar para que voltem atrás dessa aprovação. Eu queria muito que voltasse, mas eu não sei, viu? Onde mexe com política, é cruel. O mesmo que votou a favor da lei, para aprovar a lei (Elmano), depois votou contra, né?

Mas estamos batalhando, pelejando, porque são muitas formas que isso impacta as pessoas. Além da morte do Zé Maria, tem muita gente doente e a cada dia que passa é aumentando mais.Eu lembro que o Zé Maria uma vez disse que foi para uma reunião e uma senhora falou "daqui a 10 anos, vai ter muita gente com câncer".

Já tá com 15 anos, né? E a doença do século é o câncer. Meu pai morreu de câncer. (Os olhos marejam). Eu tenho certeza que muita gente pensava que o Zé era uma pedra no sapato. E essa gente pensava que acabando com ele, ia acabar o problema. Mas ninguém imaginava que ia dar tanta repercussão o que aconteceu. Achavam que era mais um que iam matar, que a família ia enterrar e por isso mesmo ia ficar. Mas não foi bem assim. Pelo contrário, rodou o mundo.

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