Aos pés da estátua de Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, na presença de Frei Damião, em ato de demonstração de braveza, o então presidente Fernando Collor de Mello esbravejou dizendo não ter medo de "cara feia" e que havia nascido com "aquilo roxo", expressão que remete a coragem.
Porém, o momento representou o início de uma onda de fortes protestos contra o seu governo, resultando em uma série de denúncias. Mais de 30 anos depois, Collor foi preso por desvio e lavagem de dinheiro.
De Assis Diniz (PT), hoje deputado estadual, era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do Ceará e presenciou as manifestações contra o então presidente e sentiu na pele a repressão do segurança do então chefe do Executivo, em imagem que rodou o país.
Após um encontro formal com Collor anos depois em Brasília e, em um cenário totalmente virado politicamente, o petista declarou não ter inimigos pessoais, mas defendeu pautas e lembrou como um protesto em Juazeiro do Norte abriu as portas para a queda do primeiro presidente eleito popularmente depois da redemocratização brasileira.
O POVO - O senhor esteve presente na manifestação contra o Fernando Collor em Juazeiro do Norte junto de membros de sindicatos e representantes partidários. Como foi a organização e o que os motivou a fazer aquele ato de protesto?
De Assis Diniz- Na época, havia todo um clima de muita insatisfação. O Governo Collor tinha construído um conjunto de políticas, principalmente o confisco da poupança e a redução da massa salarial, os contratos e os acordos salariais, todos abaixo da inflação, gerando um clima de desemprego. O que tornava o país extremamente insolúvel para a qualidade e padrão de vida da classe trabalhadora.
Vem para o Ceará o Collor com o então governador Ciro Gomes e ele em Juazeiro do Norte, ao lado do Frei Damião, imaginaram que com a imagem do Frei Damião, um homem que tem uma bondade infinita, poderia evitar qualquer manifestação.
E a Central Única dos Trabalhadores (CUT), os sindicatos, sobretudo o sindicato dos metalúrgicos, viviam em uma campanha forte do “Fora Collor”. Eles organizam uma ida até Juazeiro do Norte. E lá nos preparamos, fizemos uma concentração antes no Memorial (Padre Cícero) e saímos em caminhada até chegar muito próximo onde estavam discursando as autoridades.
E é, naquele momento, que nós somos cercados inicialmente, ficamos isolados entre a população e a segurança do evento. Levantando palavra de ordem, fazendo as denúncias de desemprego, arrocho salarial, recessão, cortes da indústria nacional, levantamos uma faixa pela derrubada do Governo Fernando Collor. Exatamente neste momento, ele tava discursando.
Ele olha e faz algumas afirmações, já tinha feito palavras soltas caracterizando Lampião, ele, e nesse momento ele diz: “Não nasci com medo de afobação, nem tenho medo de cara feia. O meu pai já me dizia desde pequeno que eu havia nascido com aquilo roxo. E tenho mesmo, para enfrentar todos aqueles que querem conspirar contra o processo democrático”.
Na parte de baixo, há uma repressão muito forte. Como nós estávamos isolados, já que tinha um cerco montado pela segurança, a repressão foi seletiva. Os dirigentes tiveram alguns que apanharam muito. No meu caso eu tive (sofri) um golpe de capoeira, que é o martelo, muito forte e acabou atingindo o meu braço. Quando a pancada vem, senti a dor e acaba desmaiando tamanha intensidade.
OP - Como esse momento foi importante para iniciar as grandes manifestações e abrir as portas para os movimentos do “Fora Collor” que levaram ao impeachment dele?
De Assis - Esse fato se torna relevante para a historiografia brasileira porque nós estávamos denunciando corrupção, denunciando todas as mazelas que o irmão Pedro Collor já denunciava, então nós concatenamos a denúncia do confisco da poupança e abusos que, na época, o próprio irmão já denunciava com o seu coordenador de campanha, Paulo César Farias.
E aquilo tudo nos levou para as manchetes porque o Collor, quando termina o ato ele, vai para a imprensa e faz uma conclamação, convida os patriotas, convida os que amam o Brasil no domingo, isso foi numa quarta-feira, e o que aconteceu foi exatamente o oposto. A sociedade brasileira, ao invés de ir para as ruas de verde e amarelo, foi vestida de preto e ali nasce um amplo movimento chamado “caras pintadas” que trouxe a base social para que o Congresso tivesse condições de fazer o afastamento e a votação do impedimento do presidente da República, Fernando Collor de Mello.
Mas aquela era uma situação extremamente delicada aos padrões do que foi a violência da política que o governo federal adotou, principalmente ao enfrentamento aos sindicatos no desemprego e arrocho salarial e sobretudo a condição que campeava e era algo que estava empenhado na estrutura de poder das entidades e estatais.
OP - Anos depois o senhor encontrou o Collor em Brasília e com o segurança que o agrediu. Como foi esse encontro e em que momento?
De Assis - Eu estava em Brasília, já no segundo mandato do presidente Lula. Eu fazia parte do Fórum Nacional do Trabalho, que o presidente Lula criou para discutir as bases de uma reforma trabalhista sindical. Teve um evento que os senadores estavam presentes e eu me dirigi ao Collor.
Disse: “Olha, não sei se você lembra, mas lá em Juazeiro do Norte quando você disse que tinha ‘aquilo roxo’ eu era um dos que estava lá e fui inclusive atingido pela violência da repressão pelo seu segurança, o Dário Cavalcante”. Aí ele sorriu e disse: “O Dário Cavalcante tá comigo até hoje”. Apontou e ele (Dário) estava lá fora.
É um momento anos depois que merece uma reflexão de que, na política, você não tem um inimigo pessoal, você tem uma ordem de classes e uma conjuntura que mostra a necessidade de se construir as ações e as articulações para desenvolver os processos e as organizações e principalmente, tornar viável aquilo que você pode apresentar na construção das políticas públicas.
Foi um encontro social, não tive e não tenho relações, nem na época, nem hoje com o ex-presidente. Foi apenas um momento ali de cinco ou talvez dez minutos numa roda social onde tinha praticamente todos os membros que compunham o Fórum Social do Trabalho, representantes dos trabalhadores, setor empresarial e do governo. Um episódio à parte. O Collor, você pode ter as divergências, mas ele tem uma vida social e trata de forma respeitosa as pessoas.
OP - E como o senhor vê a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de prender o Collor?
De Assis - Primeiro, de que o crime não compensa. A impunidade não pode prevalecer numa relação política, social e econômica. O Collor foi afastado exatamente por denúncia que tinha do uso abusivo de desvio da estrutura da máquina. Caixa 2 em campanha, propina dentro das estatais e anos depois ele restabelece os direitos políticos, é eleito senador e no exercício do mandato volta a praticar os mesmo crimes.
E nós não podemos aceitar e nem permitir a lógica da impunidade. Nós não podemos permitir que aqueles que cometeram, cometem ou que vão cometer, que não sejam julgados e que não vão para cadeia. É fundamental que um país que tem na sua democracia a relação da separação da função pública onde Montesquieu construiu toda a relação do que é a função do Judiciário, do Legislativo e do Executivo. O Judiciário tem esse papel. O que demonstra que as nossas instituições, a Polícia Federal, o Ministério Público, tem autonomia, tem independência.
E que voltaram a funcionar na sua plenitude. Eu vejo como adequado, como correto. Principalmente para uma demonstração para aqueles que estão no exercício do mandato ou que estão em cargos públicos de que não tenha a ousadia de cometer crime, pensando que serão impunes ou terão imunidade para fazer o que querem. As nossas funções são de representações, mas tem que ter a base do critério da legalidade e o princípio que deve nortear e organizar toda a ação política é dentro do preceito que a nossa constituição prevê