Médicos que trabalham nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) de Fortaleza estão denunciando as novas empresas responsáveis pela gestão dos equipamentos. Eles afirmam que houve alteração das formas de contratação do corpo médico, que passou das regras da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para contrato de Pessoa Jurídica (PJ).
Os profissionais também apontam demissão de funcionários, falta de segurança e exclusão de benefícios após início da nova gestão. As empresas assumiram os equipamentos de saúde em fevereiro deste ano após vencerem chamada pública da Prefeitura de Fortaleza, em dezembro passado.
As empresas são a Viva Rio, que assumiu a gestão das UPAs Vila Velha, Bom Jardim e Cristo Redentor; e o Instituto de Desenvolvimento, Ensino e Assistência à Saúde (Ideas), que passou a gerir as UPAs Itaperi, Edson Queiroz e Jangurussu. Todos os equipamentos de saúde citados são de responsabilidade da Prefeitura de Fortaleza, por meio da Secretaria Municipal de Saúde (SMS).
De acordo com a denúncia, as organizações indicaram, durante a licitação, que as contratações seriam na modalidade de CLT. No entanto, após assumirem as gestões, as empresas comunicaram que os médicos teriam novos contratos por meio de Sociedade em Conta de Participação (SCP), o que não foi aceito pelos funcionários.
Em fevereiro, a empresa Ideas comunicou novas três modalidades de contratação: PJ Própria, PJ do Serviço (Coletivo) ou PJ da empresa (Conta médica). A Viva Rio, por sua vez, manteve, em fevereiro, o pagamento SCP e informou que passaria à modalidade de contratação PJ da empresa a partir de março.
No entanto, neste mês, as empresas enviaram comunicado em conjunto voltando atrás quanto ao pagamento por PJ individual e, conforme a denúncia, foi lançado o ultimato no último dia 14 de março: “Só trabalha na UPA pela PJ do serviço”.
Conforme uma médica da UPA Vila Velha, que preferiu ficar em anonimato, a modalidade PJ de serviço afeta os direitos e expõe dados dos profissionais.
“Esse formato não deixa de ser uma espécie de sociedade, porque você vai se juntar com outras pessoas que você não conhece, onde nossos dados seriam expostos e estaríamos envolvidos com outras pessoas que não conhecemos. Eles só comunicam, não falam com a gente”, disse.
Ainda segundo a médica, o formato de PJ serviço também afeta o valor que deveria ser recebido. “Cada vez que eles inventam um novo método de sociedade, arranjam uma forma de ganhar dinheiro em cima do que a gente recebe. Eles cobram taxas para administrar aquela PJ. Eles estão pagando menos do que a gente recebia antes”, afirma.
De acordo com o presidente da Comissão de Direito do Trabalho da Ordem dos Advogados do Ceará (OAB/CE), Rafael Sales, as empresas só podem mudar as modalidades de contratação mediante as regras do edital da chamada pública para as gestões.
“Se ele [edital] delimitou que as empresas contratadas precisam necessariamente seguir um padrão de contratação de trabalhadores, isso deve ser observado. Se for omisso, pode dar margem para a empresa fazer contratações da forma que ela achar mais conveniente”, explica Sales.
O especialista esclarece que o método de contratação PJ serviço para profissionais que atuam nas unidades de saúde é irregular, visto que eles não podem mandar outras pessoas no lugar para trabalhar porque não são empresas e sim empregados. Portanto, deveria haver contrato CLT, ou seja, vínculo empregatício.
“O que essas empresas têm feito é basicamente diminuir a sua carga trabalhista e tributária através da formalização de um contrato que, na minha concepção, é ilegal”, avalia o presidente da Comissão de Direito Trabalhista da OAB/CE.
Fora as condições contratuais, as circunstâncias de trabalho nas UPAs também foram criticadas. “Tem faltado medicamento, saímos ao banheiro e estamos recebendo ligação, limitando nosso tempo. Foi informado que os seguranças seriam retirados para ter apenas porteiros. Estamos sem porta na parte entre a recepção e consultórios, colocando a nossa segurança em risco e dos demais pacientes”, relata médica da UPA Vila Velha.
Outros apontamentos dos médicos estão relacionados à exclusão de benefícios. “As pessoas estão tendo que levar seu almoço nas UPAs que são geridas pela empresa Ideas. Tiraram a comida dos médicos, enfermeiros e equipe em geral. Você passa 12 horas de plantão e você não tem nada”, afirma ainda a profissional.
Na UPA Jangurussu e Itaperi, uma médica, que preferiu não se identificar, disse que aconteceu uma diminuição do corpo médico após o instituto Ideas assumir a gestão. A especialista afirma que a nova modalidade de contratação encaminha para uma divisão de lucros, favorecendo a empresa.
“Querem que a gente se torne sócio-cotista de uma sociedade deles. É uma maneira de sonegar imposto e não pagar direitos trabalhistas. A gente não está tendo lucro em uma empresa, estamos para ter uma relação de trabalho”, relata.
A médica ainda aponta que as solicitações de exames estão sendo limitadas nos atendimentos aos pacientes, principalmente nas UPAs geridas pela Viva Rio. “Isso fica muito complicado para o médico. Se a gente suspeita que o paciente tem aquela patologia e precisa desse ou daquele exame, ele já tem uma limitação de quantidade. Como conseguir trabalhar com esse nível de limitação?”, questiona a profissional.
Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) informou que os regimes de contratação, atualmente, pelas Organizações Sociais Viva Rio e Instituto Ideas, são por meio de ingresso no quadro societário ou por meio de prestação de serviços (PJ).
Ainda segundo a Pasta, os profissionais de todas as UPAs gerenciadas pelo Município recebem alimentação. “Nas unidades dos bairros Cristo Redentor, Vila Velha e Bom Jardim as refeições são concedidas no local. Já nas dos bairros Itaperi, Jangurussu e Edson Queiroz, os profissionais recebem vale alimentação, que em breve será substituído por fornecimento de refeições no local”, aponta.
Quanto à solicitação de exames, a Pasta argumenta que “não há qualquer restrição à autonomia dos médicos ou imposição de limites quantitativos de exames nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs)”.
Em relação à segurança, a SMS informou que as unidades têm profissionais de vigilância, durante 24 horas e 7 dias por semana, além do apoio da Guarda Municipal de Fortaleza, que realiza rondas nas regiões em que estão localizadas. A Pasta informou que as respostas sobre o caso foram em conjunto com as empresas gestoras das UPAs.
Os pacientes que procuraram a UPA Vila Velha na quinta-feira, 21, relataram lotação e demora de mais de quatros horas para serem atendidos. Outros desistiram dos atendimentos diante do cenário que encontraram na unidade de saúde municipal. O POVO esteve no local e constatou a situação.
O advogado Chagas Sousa, 39, chegou à unidade por volta das 9 horas buscando atendimento após sentir dores na garganta e tosse, no entanto, desistiu de aguardar após passar mais de duas horas sem ser chamado. “Desisti e vou ter que pagar para ter um atendimento mais rápido”, disse.
Para a auxiliar de serviços gerais Madalena Sousa, 43, o atendimento na unidade estava “péssimo”. “Quase três horas que estou aqui e ainda não fui atendida. Eles têm que entender que a gente também é prioridade. A gente está sentindo dor, tem gente vomitando, com febre. Parece que o atendimento está meio devagar. Essa UPA é precária”, afirma.
O Sindicato dos Médicos destacou, ao O POVO, que diante das “precárias condições contratuais de trabalho e a falta de valorização profissional que colocam em risco a qualidade do atendimento e a segurança dos pacientes, o Sindicato seguirá apoiando os médicos e solicitando das autoridades a breve resolução, para que o devido atendimento e condições de trabalho sejam restabelecidas para os profissionais e para a população”.