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Decisão do STF: lógica do policiamento precisa mudar
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Decisão do STF: lógica do policiamento precisa mudar

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A Guerra às Drogas foi um conjunto de políticas implementadas pelos Estados Unidos, nas décadas de 1970 e 1980, que visavam ao combate do tráfico de entorpecentes nas Américas. O que se viu, na prática, foi o uso do militarismo como forma de atender aos interesses norte-americanos no continente.

Esse modelo passou a ser copiado pelos demais países da região e por governos estaduais, com maior ou menor ênfase no caráter belicista. É o principal recurso quando se instala uma situação de crise. Basta perceber o quanto o discurso do governador Elmano de Freitas foi mudando ao longo de sua gestão à medida em que os indicadores da violência letal pioraram. A palavra de ordem da política de segurança pública atual é "caçar os criminosos". Termo mais militar que esse impossível.

Haia Ayman Shahadeh e André Luís André traçam um panorama muito preciso da Guerra às Drogas em um artigo publicado no Le Monde Diplomatique. Dentre os resultados dessa estratégia, destacam-se: aumento do encarceramento, principalmente de negros e latinos nos EUA; criminalização de lutas populares e violação de direitos humanos; expansão do narcotráfico, da violência e da corrupção, com a inserção dos países da América do Sul na cadeia do tráfico internacional como fornecedores de drogas e consumidores finais.

Em dois anos, a Polícia Civil do Ceará incinerou mais de cinco toneladas de drogas apreendidas. A cada nova incineração, um recorde. O que esse fogaréu todo tem contribuído para a redução da violência e da criminalidade? A falta de resultados efetivos é um sinal de que essa política precisa ser revista, começando pela descriminalização do usuário.

O Supremo Tribunal Federal (STF) deu um passo que pode ser decisivo nesse sentido. Em julgamento finalizado na semana passada, ficou estabelecido em até 40 gramas e seis plantas por residência a posse da maconha sem que isso configure crime. Há circunstâncias que permitem a prisão, mesmo que o usuário esteja dentro da quantidade inferior à determinada legalmente.

A decisão do STF vai na posição contrária à Guerra às Drogas ao abordar a questão do uso de entorpecentes de forma madura. Mencionei em uma coluna recente exemplos de diversos países europeus e até mesmo do próprio EUA que passaram a adotar medidas mais flexíveis em relação à venda e ao consumo do entorpecente.

O porte de maconha tem sido uma porta escancarada de entrada para o mundo do crime. É sabido também que a cor da pele influencia decisivamente a tomada de decisão de prender ou não o usuário. O corte racial é um fator fundamental dessa lógica. Nos Estados Unidos, os presos latinos e negros representam dois terços da população carcerária hoje, invertendo uma estatística de antes da política de guerra, quando os brancos eram maioria nas prisões.

Os impactos sobre o hiperencarceramento são nítidos. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) prepara um mutirão para desencarcerar detentos presos por carregar as quantidades da droga hoje permitida. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revelam que 33% dos casos de condenação por tráfico de maconha estão abaixo do limite definido pelo STF, de 40 gramas. Além disso, mais de 6,3 mil processos aguardavam a decisão do tribunal para a pena definitiva dos réus.

O policiamento ostensivo terá de passar por mudanças. Não faz sentido os policiais que estão na rua terem o trabalho extra de analisar se a quantidade de maconha encontrada com usuários equivale a 40 gramas e muito menos andar com balanças de precisão nas viaturas.

Argumentos contrários à medida começam a surgir, como se o trabalho da polícia fosse ser extinto por não reprimir pequenos usuários de maconha. Vale ressaltar que a cocaína ainda permanece proibida. O foco deve residir na apreensão de armas de fogo, essa sim um grande vetor da violência armada.

Medidas como a volta da bonificação para policiais que apreenderem armas de fogo podem ser tomadas, aprimorando a repressão estatal contra a circulação de armamentos. Esse incentivo foi suspenso após o motim da PM, impactando negativamente o policiamento de rua. Como se vê, há muito a ser feito em termos de abordagens sem necessariamente reprimir usuários a esmo.

Em outra frente, políticas mais efetivas de prevenção e redução de danos precisam ser implementadas. A decisão do STF abre margem para que a questão das drogas seja abordada na seara da saúde pública, haja vista que a atual política só resulta em mortes e no fortalecimento do crime organizado. Nunca tivemos tantos grupos armados em operação no Brasil e essa expansão está vinculada diretamente ao proibicionismo.

É imperativo alinhar as visões das instituições sobre os entorpecentes. A compreensão do STF sobre o tema colide frontalmente com a do Congresso Nacional, que é bastante influenciado pelas bancadas da Bala e Evangélica. O Governo Federal, por sua vez, precisa chancelar e apoiar a decisão do Supremo para estimular os governos estaduais a operar sob essa nova lógica nas ruas. E aí temos o governador de São Paulo na contramão dos direitos humanos mais básicos.

O caminho ainda é longo, mas as vitórias precisam ser celebradas.

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