Mais de 200 bebês nasceram de meninas com idades entre 10 e 14 anos no Ceará somente neste ano. Foram 249 nascidos vivos de crianças e adolescentes nessa faixa etária, informou ao O POVO a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) em 2 de julho último. Em todo o ano passado, esse número foi de 681.
A problemática voltou à tona com a proposta que tramita na Câmara Federal de aumentar a pena a quem abortasse, ao igualar a prática ao crime de homicídio. Mas trata-se de um problema perene, que, apesar de uma relativa queda de casos nos últimos anos, continua a existir.
Em 1994, 1.102 bebês nasceram filhos de mães de idade entre 10 e 14 anos, conforme mais antigo dado disponível no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), do Ministério da Saúde. Em 2004, esse número foi de 1.359 e, em 2014, de 1.449.
Conforme o artigo 217 do Código Penal Brasileiro, todo e qualquer ato libidinoso praticado com menores de 14 anos caracteriza-se como estupro de vulnerável. A pena para esse crime varia entre 8 e 15 anos. “As penas previstas”, deixa claro o CPB, “aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime”.
No Ceará, 583 meninas de até 14 anos foram abusadas sexualmente somente no primeiro semestre deste ano. Esse número representa mais que a metade (56,98%) do total de registros de vítimas de crimes sexuais (1.023) de janeiro a junho deste ano.
Essa é uma realidade não só do Ceará. De acordo com o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, documento publicado em 2023 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 6 a cada 10 vítimas de abuso sexual no Brasil têm até 13 anos. Os números, porém, alertou o FBSP, podem ser bem maiores por causa da notória subnotificação da violência sexual.
"Estudo recente divulgado por pesquisadores do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) indicou que apenas 8,5% dos estupros no Brasil são reportados às polícias e 4,2% pelos sistemas de informação da saúde", afirmaram em artigo as pesquisadoras do Fórum Samira Bueno, Marina Bohnenberger, Juliana Martins e Isabela Sobral.
"Vale destacar que é comum que a criança não tenha sequer capacidade de reconhecer o abuso sofrido, seja pela falta de conhecimento sobre o tema ou pelo vínculo com o agressor", também afirmaram as autoras.
"Isto porque é compreensível que a criança tenha algum sentimento de amor ou mesmo lealdade pelo agressor, já que em geral o abuso é praticado por pais, padrastos, avôs e outros familiares (Conte, Simon, 20218). Além disso, o abusador tende a manipular a criança com ameaças ou subornos, o que garante o silêncio da vítima (ibidem). Por fim, o sentimento de culpa ou mesmo vergonha costuma estar presente na criança, que acaba por não revelar nada a familiares".
Por causa dos calos afetivos comumente tido pelos agressores e vítimas, o FBSP ainda destaca o papel de outros atores na prevenção e identificação dos abusos, a exemplo das escolas. "O relatório Child Maltreatment 2019, produzido pelo Child Welfare Information Gateway, mostrou que os profissionais que mais reportam episódios de maus-tratos e abusos contra crianças nos EUA são aqueles vinculados à educação (21%), seguidos das polícias e demais agentes da lei (19,1%), e os serviços de saúde (11%)".
Meninas grávidas não correm risco apenas em relação à saúde física, mas também em relação à saúde mental, alerta a educadora social Lídia Rodrigues, integrante do Fórum Permanente de ONGs de Defesa de Direitos de Crianças e Adolescentes do Ceará (Fórum DCA). “Essas meninas não têm condição de maternar", afirma. "Elas ainda são crianças, estão em um outro momento da vida. Traz também essa consequência de uma responsabilidade, uma pressão social, que elas não têm como corresponder”.
Há ainda, lembra Rodrigues, os impactos no desenvolvimento pessoal da agora mãe, já que, muitas vezes, a menina, por exemplo, deixa de estudar. A especialista destaca a falta de acesso à educação sexual como um dos fatores que incidem sobre a “problemática social”, como ela classifica gravidezes desse tipo. A pesquisadora discorre sobre o desconhecimento que muitas meninas têm sobre o próprio corpo durante a puberdade. A autonomia sexual também é algo que incide sobre a questão, afirma, já que muitas meninas não têm a possibilidade de dizer “não” a situações abusivas.
“A gente tem uma educação que não faz, de forma efetiva, a educação em auto-proteção”, diz Rodrigues. A gente tem uma péssima distribuição de métodos como a camisinha e de informações sobre isso e a gente tem um sistema de saúde que nem sempre informa para essas meninas que foram vítimas de violência sobre seus direitos”.
Em nota, a Sesa ressaltou ter publicado neste ano os manuais "Diretrizes para o Cuidado à Saúde Reprodutiva" e "Cuidado à Saúde da Criança, do Adolescente e da Mulher em Situação de Violência", que, ao lado de oficinas voltadas à capacitação dos profissionais de saúde que atuam em casos dessa natureza. Os documentos, prossegue a Sesa, trazem orientações sobre medicamentos, procedimentos para realizar as notificações e informações da rede intersetorial.
"Há ainda a Rede Pontos de Luz, um conjunto de serviços em vários níveis de complexidade, da Atenção Primária, da Atenção Especializada, da Atenção Terciária, organizados para acolher as pessoas com diversas especificidades de situações de violência, contemplando serviços ambulatoriais e hospitalares", afirmou ainda a nota da Sesa.
"Unidades da Sesa que são referências no atendimento: Hospital Geral de Fortaleza, Hospital Infantil Albert Sabin e Hospital Geral Dr. César Cals, em Fortaleza, e Hospital Regional Norte, em Sobral".