Ainda não é obrigatório, mas deveria: "O destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher". O texto está na Lei Maria da Penha, que completa sua maioridade hoje e, entre seus tantos avanços legais nesses 18 anos, ainda peleja para que a temática esteja em todas as salas de aula.
Ao longo dessas quase duas décadas, a legislação promoveu mudanças estruturais importantes, que além do enfoque punitivo, incluiu medidas de proteção, prevenção e assistência. Com dificuldades de implementação, resistência aos investimentos necessários e, acima de tudo, números ainda assustadores: no Ceará, entre janeiro e junho, foram 12.341 mulheres vítimas de violência doméstica.
"Se você desenvolve o trabalho na educação, falando sobre feminismo, com discussão de gênero, explicando sobre a Lei Maria da Penha e outras leis existentes de proteção, isso fará com que a violência, a misoginia e o patriarcado vão se desidratando, até acabarem", acredita a coordenadora da Casa da Mulher Brasileira, em Fortaleza, Daciane Barreto. Prova desse efeito direto é que, segundo ela, sempre, de forma recorrente, após rodas de conversas nas escolas, há intervenções de relatos sobre a violência intrafamiliar. "É dentro de casa que acontecem 60% dos feminicídios", completa.
A coordenadora de projetos do Instituto Maria da Penha, Rose Marques, destaca que a escola é ferramenta importante na prevenção. "É um espaço genuíno para formação de pessoas e para a desconstrução de valores, necessária para um mundo livre de violência contra mulheres e meninas", considera, ressaltando a formação continuada docente e a necessidade de que o tema seja tratado em todas as disciplinas. "Tendo como premissa que, na escola, não podem mais ser admitidos estereótipos ou papéis sociais que visem manter a situação de violência".
Comportamentos como o "machismo recreativo" que, segundo o secretário executivo de Equidade e Direitos Humanos da Secretaria da Educação do Ceará (Seduc), Helder Nogueira, são identificados dentro das escolas. "É aquele que provoca o bullying, as piadas preconceituosas e até mesmo a violência, física, verbal e até psicológica", conta. Na educação básica, no bojo das temáticas que derivam sobre sexualidade e igualdade de gênero, está também a problemática da gravidez: em 2024, 149 bebês nasceram de meninas entre 10 e 14 anos.
"Buscamos trabalhar essas questões dentro do ano letivo, sem ser apenas de forma pontual, em eventos. Mas no cotidiano pedagógico, seja na língua portuguesa, na matemática, no vocabulário, em uma questão da prova", afirma o secretário. Na rede estadual, de acordo com Helder, a temática a ser discutida em 2024 é exatamente a equidade de gênero e o enfrentamento à violência contra a mulher. No Estado, a Lei 16044, de 2016, estabelece que as escolas tenham, todos os anos, a Semana Maria da Penha.
Professora, doutora em Educação e membro do Fórum Cearense de Mulheres, Marília Guimarães considera que já houve avanços dentro das instituições de ensino. "Principalmente nas posturas sexistas das instituições, dos profissionais da educação. Hoje, temos crianças e adolescentes que rompem a modelagem de gênero, mas paramos por aí". Para ela, é preciso compreender a raiz das questões de gênero para entender o problema e então desafiar a noção de propriedade que os homens têm sobre as mulheres.
"É essa posse que cria a hierarquia e é essa relação que legitima a violência", considera Marília. E é para diminuir esse pensamento que a educação deve trabalhar. Marília lembra que a escola tem a atribuição de conscientizar para a libertação. "O estreitamento curricular que a gente vive perpetua estereótipos e reproduz violências seculares. Quando a gente se omite a fazer essa educação, a gente diz que esse é o mundo que a gente quer. E não é".
Cordel, poesia e realidades para educar crianças e jovens
"Estamos trabalhando no presente para que, no futuro, violência contra a mulher seja coisa do... PASSADO". Quem começa a frase é o artista e cordelista Tião Simpatia. Quem a finaliza são estudantes de uma escola municipal de Fortaleza, formada por alunos do
ensino fundamental.
O projeto Lei Maria da Penha em Cordel foi criado no ano seguinte à legislação e conseguiu transformar os artigos jurídicos em poesia, que é ouvida e compartilhada por estudantes. "Eu compilei os principais artigos em 33 estrofes de cordel. E esse trabalho já chegou a mais de 15 milhões de pessoas, nos formatos físico e virtual. E muitas crianças decoram e replicam", conta o artista.
O cordel, segundo Tião, muitas vezes é o primeiro acesso à literatura e tem forte aceitação. O que torna a linguagem mais eficaz para passar a mensagem que se pretende. "Eu começo trazendo os alunos para fazermos os versos juntos e quando estão mais atentos, faço a leitura dos artigos. Cada um recebe a cartilha e fazemos algumas leituras. E aí fechamos com música", detalha. São cerca de 30 a 40 minutos de mostra.
Neste semestre, Tião diz que o Projeto rodará 140 escolas cearenses do Interior. Sertão Central, Inhamuns, Litoral Leste e Oeste e no Cariri, região cearenses com alto índice de crimes contra a mulher.
Em 2019, no Paraná, um juiz usou trecho do cordel de Tião para embasar uma sentença na qual negava a aplicação da Lei Maria da Penha a um homem, que teve seu carro deteriorado pela companheira. "E se acaso for o homem que da mulher apanhar, é violência doméstica, você pode me explicar? Tudo pode acontecer no âmbito familiar, mas nesse caso é diferente, a lei é bastante clara por ser uma questão de gênero, somente a mulher ampara. Se a mulher for valente, o homem que livre a cara".
Protagonismo: "Mesmo que não quisessem, eu falaria"
Rachel de Queiroz, Agatha Christie, Malala, Carolina Maria de Jesus... foi na Prateleira Maria da Penha que a aluna do 3º ano do ensino médio, Amanda Melo, presidente do Grêmio "Voz Ativa", do Liceu de Messejana, conheceu essas autoras. O acesso às publicações é parte do projeto que pretende promover espaços que estimulem a leitura e o debate de diferentes temáticas como protagonismo, empoderamento e liderança feminina.
Com Amanda, a iniciativa, junto ao apoio do corpo docente, já tem resultado expressivo, basta ouvi-la por alguns minutos. "Quando eu percebi que era capaz de falar, de me expressar, que eu tinha liberdade para ser quem eu quero, comecei a me arriscar. A falar sem me preocupar se iam me escutar ou não", conta. Eleita por três anos seguidos presidente do grêmio estudantil, concorrendo com homens, ela sabe que está exatamente onde deveria. "Mesmo que não quisessem, eu falaria, por que isso significava que eu tinha coragem e capacidade de ser a mulher que eu queria ser".
As dificuldades não deixam de ser realidade. Amanda destaca que, muitas vezes, quando precisa falar à turma e não encontra silêncio, recorre a algum amigo homem. "Não falta representatividade, nem estímulo. Mas ainda existe um machismo estrutural persistente entre os meninos, que mesmo preferindo representantes mulheres, ainda são relutantes em ouvi-las e considerá-las".
O projeto da Prateleira está em 300 escolas da rede estadual de ensino, que além de livros, oferece cartilhas e materiais elaborados pelo Instituto Maria da Penha, Tribunal de Justiça e Ministério Público. "É preciso que as ações aconteçam de forma permanente e que haja orçamento público para seu desenvolvimento. Mas as escolas estão preparadas para identificar e encaminhar casos de violência? É preciso que estejam!", frisa a coordenadora de projetos do Instituto, Rose Marques.
AVANÇOS NA LEGISLAÇÃO
1ª Delegacia da Mulher em Fortaleza:1986
Conselho Cearense pelos Direitos da Mulher: 1986
Primeiro abrigo para mulheres vítimas de violência no Ceará:1988
Lei do Feminicídio: 2015
Lei contra importunação sexual: 2018
AVANÇOS LEI MARIA DA PENHA: 2006
> Reconheceu os diferentes tipos de violência (física, moral, patrimonial e sexual)
> Introduziu medidas protetivas de urgência
> Aplica-se a todas as pessoas que se identificam com o gênero feminino
> Determina programas educacionais com a perspectiva de equidade de gênero, raça e etnia e grupos reflexivos para reabilitação
de agressores