Logo O POVO+
Desocupação termina em morte e protestos no Grande Pirambu
CIDADES

Desocupação termina em morte e protestos no Grande Pirambu

Homens encapuzados iniciaram desocupação de terreno no Carlito Pamplona e uma mulher morreu baleada. Em protesto, moradores depredaram coletivos e fizeram barricadas em vias
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
APÓS destruição dos barracos, 
clima ficou tenso na área (Foto: fotos FÁBIO LIMA)
Foto: fotos FÁBIO LIMA APÓS destruição dos barracos, clima ficou tenso na área

Sem a existência de uma ordem judicial, a desocupação de um terreno de 33 mil m² no bairro Carlito Pamplona, Grande Pirambu, em Fortaleza, resultou na morte de Mayane dos Reis, 28 anos, além da suspensão de 14 linhas de ônibus, apedrejamento de dois coletivos, barricadas de fogo em vias e confronto entre população e a Polícia. Região pulsante da Capital viveu, ontem, dia de tensão que retratam cenário de insegurança pública e demanda fundiária. 

Era madrugada quando as pessoas que estavam no terreno contam que foram acordadas por homens encapuzados e armados que, com ajuda de uma retroescavadeira, determinaram a desocupação. “Eu e a minha família estávamos dormindo. Eles chegaram rasgando a lona com uma faca e apontaram a lanterna e a pistola para gente. Chamei minha esposa para arrumar as coisas e eles falaram “bora, vocês têm que sair daqui ligeiro”, disse um dos ocupantes do terreno, que preferiu ficar em anonimato.

A ocupação nomeada “Deus é Amor” concentrava dezenas de moradores que ocuparam o espaço há pelo menos 15 dias, alegando que não possuíam moradia. Fica entre as ruas Dom Hélio Câmera e Santa Rosa, rodeada de mais três comunidades: Aldeia, Carandiru e Santa Rosa. Mayane, moradora de uma das comunidades próximas, teria saído da casa de parentes em busca do marido, que estava na ocupação tentando garantir o pedaço de terra da família.

Diante da morte de Mayane, populares iniciaram uma manifestação no entorno do terreno pedindo justiça. Houve depredação de coletivos e instalação de barricadas em vias. Ao longo da manhã, equipes do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), do Comando de Policiamento de Rondas de Ações Intensivas e Ostensivas (CPRaio), da Polícia Militar do Ceará (PMCE), estiveram no local para controlar as obstruções das vias interditadas. Cinco linhas de ônibus precisaram fazer desvios e 14 foram suspensas, voltando à normalidade durante a tarde. Houve conflito entre manifestantes e a Polícia. 

Conforme informações obtidas pelo O POVO, com uma fonte da Segurança Pública do Estado, foram identificados indícios de um confronto entre os seguranças contratados da empresa dona do terreno e suspeitos de atuarem no tráfico de drogas na região durante a invasão. Teriam sido encontrados cartuchos de fuzis, 9mm e .40 entre os dois eixos do terreno.

A empresa proprietária do terreno é a Fiotex Industrial que, através de nota, afirmou que foi oficiada pela PM na última sexta-feira, 6, sobre a ocupação e que um Boletim de Ocorrência foi feito no mesmo dia. De acordo com a nota, "a empresa adotou as medidas para cessar a demarcação ilegal". Informou ainda que a ação teria durado duas horas, de forma pacífica, até que a equipe teria sido surpreendida por pessoas de fora do terreno, "arremessando pedras, ateando fogo e realizando disparos contra todos que se encontravam no local e seus arredores". Nota menciona ainda que a ação foi "testemunhada" por policiais. 

Também através de nota, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) afirmou que o Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP) investiga as circunstâncias da morte de Mayane e que, durante as diligências, três pessoas que teriam participado da desocupação foram identificados e ouvidas. Não houve atualização sobre quem eram, se foram detidas e se cumpriam alguma ordem judicial de desapropriação. 

Sobre o ofício enviado à empresa Fiotex sobre a ocupação, a PM informou que oficiou a empresa e orientou sobre como proceder no caso de solicitação de medidas judiciais legais. "Quanto à possibilidade da presença de viaturas e/ou policiais militares no local, anteriormente ao acionamento da Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança (Ciops), na manhã desta terça-feira (10), os fatos serão averiguados por meio do procedimento pertinente", diz o pronunciamento. 

Pelas redes sociais, o governador Elmano de Freitas (PT) reforçou que a Polícia investiga o caso e que determinou ao titular da SSPDS, Roberto Sá, "rigorosa apuração deste lamentável episódio". 

Para o advogado e coordenador do Escritório de Direito Humanos e Assessoria Jurídica Popular Dom Aloísio Lorscheider, da Câmara Municipal de Fortaleza, Marcus Giovani Ribeiro, que esteve no local, os moradores negam que tenha havido interferência do poder local das facções. "Segundo os moradores, havia agentes de segurança envolvidos na desocupação. Existe uma relação promíscua da segurança pública com facções e com as milícias armadas. São grupos paramilitares armados que estão a serviço de quem pagar", explica.  

Ele pondera ainda a falta de interesse do poder público em sanar questões fundiárias. "O pode público não age e acaba que a iniciativa privada acha que tem legitimidade para agir, inclusive agir acima da lei. Agora é pressionar a segurança pública para que apure os verdadeiros responsáveis". (Colaborou Mirla Nobre e Kleber Carvalho/Especial para O POVO)

 

Defensoria Pública afirma que desocupação precisa de decisão judicial

"Para reaver um terreno é preciso juntar provas e entrar com reintegração de posse. Os proprietários teriam de entrar com uma ação e esperar a decisão do juiz. Oficial de Justiça vai comunicar à comunidade... não pode fazer desocupação de vontade própria. Estava lidando ali com pessoas. Está aí o resultado da ação ilegal". A expplicação é da defensora pública Elizabeth Chagas, que esteve no terreno após a ação de desocupação. 

Ela garante que, sob nenhuma justificativa, a desocupação poderia ter acontecido sem a estrutura de acolhimento e mediação, citando que o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), que seria a entidade responsável por emitir decisão judicial, possui uma comissão de solução fundiária justamente para casos em que é preciso fazer a retirada de pessoas. 

Agora, o trabalho da Defensoria e dos outros órgãos de proteção e defesa dos direitos humanos é fazer um levantamento sobre quem são as famílias expulsas - o número informado pelos moradores dá conta de centenas. "Saber se estão no Cadúnico, se tem criança, doentes, grávidas, quantas pessoas trabalham, qual a renda... um mapeamento para que a gente, dialogando com  outros órgãos, consigamos achar soluções". (Sara Oliveira)

 

 

Defensoria afirma que ação precisaria de decisão judicial

"Para reaver um terreno é preciso juntar provas e entrar com reintegração de posse. Os proprietários teriam de entrar com uma ação e esperar a decisão do juiz. Oficial de Justiça vai comunicar à comunidade... não pode fazer desocupação de vontade própria. Estava lidando ali com pessoas. Está aí o resultado da ação ilegal". A expplicação é da defensora pública Elizabeth Chagas, que esteve no terreno após a ação
de desocupação.

Ela garante que, sob nenhuma justificativa, a desocupação poderia ter acontecido sem a estrutura de acolhimento e mediação, citando que o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), que seria a entidade responsável por emitir decisão judicial, possui uma comissão de solução fundiária justamente para casos em que é preciso fazer a retirada de pessoas. "Houve uma pessoa morta, é preciso saber o que houve. Não existe nenhuma autorização para que cheguem, encapuzadas, atirando e mandando as pessoas saírem", reforça.

Agora, o trabalho da Defensoria e dos outros órgãos de proteção e defesa dos direitos humanos é fazer um levantamento sobre quem são as famílias expulsas - o número informado pelos moradores dá conta de centenas. "Saber se estão no Cadúnico, se tem criança, doentes, grávidas, quantas pessoas trabalham, qual a renda... um mapeamento para que a gente, dialogando com outros órgãos, consigamos achar soluções".

Mayane foi morta a tiros durante desocupação de terreno no bairro Carlito Pamplona
Mayane foi morta a tiros durante desocupação de terreno no bairro Carlito Pamplona

Mayane Reis queria sair do aluguel, diz amiga da vendedora morta

Uma amiga da vendedora Mayane Reis, morta durante desocupação de um terreno localizado no bairro Carlito Pamplona, em Fortaleza, destacou que a mulher seguia para o terreno ocupado no intuito de buscar o marido, que estava em uma das barracas. A vítima foi baleada no peito e socorrida pelos moradores da comunidade, mas não resistiu aos ferimentos. O caso foi registrado durante a madrugada desta terça-feira, 10. 

De acordo com a testemunha, de nome preservado, o terreno em questão é desocupado há 35 anos. A vendedora e o marido, que trabalha como entregador, moravam na casa de familiares com a filha de cinco anos de idade.

O casal participou da invasão do terreno e o companheiro de Mayane estava na barraca quando um grupo de homens encapuzados chegou ao local com uma retroescavadeira. As pessoas foram ameaçadas e obrigadas a se retirar do local. 

A testemunha narra que no momento dos disparos de arma de fogo, as mulheres que estavam na ocupação correram. "Quando começaram a atirar as mulheres correram e a bala atingiu ela no peito", afirmou a amiga. 

"É muito triste. Foi tirada a vida de uma mãe de família que estava tentando um canto para morar. E hoje acontece uma tragédia dessas. Ela não tinha moradia e pretendia construir a casa ali. Ela e o marido trabalhavam, a criança ficava na creche. Tudo é muito difícil e agora vai ficar mais difícil para a bebê que vai ficar sem mãe", relatou. 

Outra amiga da vítima relata que a moça era conhecida por ser uma pessoa educada e que vivia para a filha. "Foi um abalo para todos nós. Saía para trabalhar ela, o esposo, a filha ia para a creche. Ela só estava atrás de um lar, sair do aluguel", afirma.

A mulher relata que todos estão com medo de que o grupo possa voltar. "Foi uma injustiça o que fizeram. Não pediram para ninguém sair. Eles eram só batendo e passando o trator nos barracos e atirando. Fazer isso pela madrugada, onde só tinha família. É tanto que tiraram a vida de uma mãe de família que estava ali, mas quando amanhecia ia atrás de garantir uma vida digna para sua família", descreve. 

O velório de Mayane teve início na noite de ontem no bairro Pirambu. A despedida foi marcada pela emoção da filha e do esposo da vendedora. "Uma filha com as mãos no caixão pedindo para a mãe acordar e a avó segurando a menina. É uma dor terrível, que não sei descrever", relata a amiga que passou mal e precisou ser levada para uma unidade de saúde. 

Uma das moradoras e colega da vítima relata que após o crime o clima de tensão continua pelo medo que as pessoas estão de uma nova desocupação. "Minha filha de 19 anos está lá no terreno. Eu fico trabalhando e pensando nela. Nós só queremos segurança", descreve. 

 


 

APOIO

Foram para o local representantes da Defensoria Pública, da Secretaria de Direitos Humanos do Estado, além dos escritórios de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica da Câmara Municipal (Dom Aloísio Lorscheider-Edhal), e da Assembleia Legislativa (Frei Tito de Alencar)

O que você achou desse conteúdo?