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Direito à universidade é "luta ancestral" dos quilombolas
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Direito à universidade é "luta ancestral" dos quilombolas

| ensino superior | Pesquisadora das questões étnicas quilombolas, a doutoranda em História Social pela UFC Ana Eugênia destaca a necessidade de políticas de permanência
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Ana Eugênia, pesquisadora das questões étnicas quilombolas, no quilombo do Sítio Veiga, onde é celebrada a dança de São Gonçalo (Foto: Márcia Paraíso)
Foto: Márcia Paraíso Ana Eugênia, pesquisadora das questões étnicas quilombolas, no quilombo do Sítio Veiga, onde é celebrada a dança de São Gonçalo

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ãe Véia saiu de Pau dos Ferros, município do interior do Rio Grande do Norte, em 1906, e fez morada em Quixadá, mais especificamente na comunidade quilombola do Sítio Veiga. É na localidade distante 169,61 quilômetros (km) de Fortaleza que está fundamentada a ancestralidade de Ana Maria Eugênia da Silva, tataraneta de Mãe Véia. Pesquisadora das questões étnicas quilombolas, Ana Eugênia se reconhece na coletividade e na passagem das gerações de mulheres que vieram antes dela para dar continuidade a uma luta ancestral de direito ao acesso à educação.

"Sou filha de Socorro Eugenia, primeira professora quilombola do Sítio Veiga, dançadeira de São Gonçalo, neta de Maria Luiz parteira e tataraneta de Mãe Véia", celebra. "Minha ancestralidade está no quilombo Sítio Veiga em Quixadá e sou filha e neta, bisneta de mulheres dançantes, raizeiras, que têm a coletividade como um dos princípios fundantes para a manutenção da vida. Que carrega em si o saber da terra, das plantas, dos animais, da vida."

Ana Eugênia é doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC), bolsista da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) e mestra em Humanidades pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).

O acesso ao ensino superior se deu por meio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), quando, aos 43 anos, Ana Eugênia entrou no curso de Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Ela foi a primeira mulher do quilombo do Veiga e a primeira da família a entrar em uma universidade. Com a conquista, veio o entendimento de que não queria ficar sozinha no ambiente acadêmico: "Eu poderia até ser a primeira, mas eu não queria ser a única".

O POVO - A senhora entrou para a universidade aos 43 anos. Como foi esse momento?

Ana Eugênia - Sou mãe solo e entrei na universidade em 2012, onde fiz um vestibular específico, uma espécie de cotas, do Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), e era destinado a alunos de Reforma Agrária. Foi na Uece. O curso acontecia tempo-escola e tempo-comunidade, pedagogia de Paulo Freire. Em 2013 começou e me formei em 2018. Sendo a primeira mulher quilombola das famílias Eugenia e Ribeiro a ingressar na universidade. A primeira do quilombo e a primeira da família a alcançar o ensino superior. E eu decidi que eu não queria ficar sozinha, que eu poderia até ser a primeira, mas eu não queria ser a única. Então, entendo que a educação é de suma importância e desde então venho falando sobre a importância dos quilombolas, venho falando de nós nos espaços em que eu circulo e a importância do ensino superior.

O POVO - Quais foram os principais desafios encontrados nesse caminho?

Ana Eugênia - Então, foram muitos desafios, né? O primeiro deles era ter que deixar meus filhos, mas sabia que minha família cuidava. Nos quilombos há esse princípio de solidariedade. Que se você precisa sair, a família fica com os filhos. Mas uma [das crianças] era muito pequena e às vezes eu levava, isso me deixava ficar mais tranquila. E também um dos desafios era você estar em um espaço que é estranho, um espaço em que o teu corpo é tido e visto como exótico, um espaço em que o teu conhecimento não é contabilizado.

Então, eu me via e me sentia como sujeito de segunda categoria. E foi bem difícil a adaptação. O que facilitou o processo é que era uma turma que passava pelas mesmas dificuldades, eram os mesmos enfrentamentos, porque eram todos oriundos do campo, e aquelas dificuldades nós enfrentamos juntos.

Então, eu sempre penso na importância de você estar junto com os seus, embora sendo pessoas de diferentes lugares e estados, mas o que nós tínhamos em comum era a relação com a terra, porque todos aqueles estudantes da época do Serviço Social, da turma do Pronera, eram oriundos do campo. A gente sabia lidar, a gente sabia o jeito do outro, a gente vivia, embora em lugares diferentes, mas a realidade era muito parecida.

E isso foi importante para enfrentar os desafios, que foram muitos. O maior deles foi a questão do preconceito racial, porque a maioria eram pessoas negras, que tinham seus modos de ser e de agir diferentes, e isso incomodava as pessoas ali da universidade, mas nós enfrentamos.

O POVO - Qual é a importância da propriedade histórica quilombola nesse processo?

Ana Eugênia - Nego Bispo, grande intelectual quilombola, filósofo, nosso mestre que ancestralizou no passado, ele vai dizer no livro "A terra dá, a terra quer", ele vai dizer que nós somos povos de encruzilhada. Não é qualquer caminho que serve para a gente, nós temos trajetória. E ele diz, nós somos começo, o meio e começo. As nossas trajetórias não têm fim.

E aí é importantíssimo que a gente conheça a nossa trajetória. Muitos dizem que o Brasil é rico por conta do café, do charque, da cana de açúcar. Isso é uma falácia, isso é um despautério. O Brasil é rico devido ao sangue dos povos africanos que foram obrigados a cruzar o Atlântico, do sangue dos povos indígenas que foram dizimados, mortos, estuprados, de todos esses povos. Então, é preciso uma reparação histórica para com essas populações. A maioria dos quilombolas que estão hoje no ensino superior é o primeiro da família. Isso é uma violência sem precedência.

O POVO - Como a senhora avalia as políticas de permanência atualmente? Elas são efetivas?

Ana Eugênia - Nossa luta mãe é a questão do território, a demarcação do território, ela é a mãe de todas as lutas porque se os quilombolas tiverem acesso ao território, eles vão poder ter uma educação, vão poder estudar dentro de seus territórios e pautar uma educação escolar quilombola. Eles vão ter um posto de saúde dentro do território, eles vão ter mais dignidade.

As políticas efetivas, as políticas valorativas, elas precisam respeitar essa particularidade. Nós não queremos só acessar, nós queremos permanecer. Hoje, no Ceará, nós temos em torno de cinco pessoas que são doutoras quilombolas. É muito pouco. Nós somos quase 24 mil. Então, daí você vê que é preciso que tenha mais política valorativa para que o nosso povo possa ter seu jeito. Direitos assegurados.

O POVO - Que caminhos poderiam fazer a diferença nessa questão das políticas de permanência?

Ana Eugênia - Os caminhos para que pensem em uma forma de incluir a população é uma inclusão participativa. Quem não senta para aprender não pode levantar para ensinar. A primeira coisa que tem que fazer é escutar esses sujeitos e construir essas políticas de forma conjunta, de forma coletiva. Não adianta eu preparar um banquete e botar um muro bem alto entre a pessoa que está com fome e o banquete. Algumas pessoas podem até chegar até a comida, mas a maioria ficará do outro lado com fome. Então, pensar em políticas de permanência é, sobretudo, escutar os sujeitos atendidos por essa política. Então, viva as cotas, viva as políticas de ações afirmativas e viva os quilombos e os quilombolas, que são sujeitos de direito e que devem ser respeitados por toda a sociedade e devem ser incluídos dentro de uma política de ação afirmativa. Nós queremos um Brasil para os quilombolas, um Ceará para os quilombolas.

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