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Na rua de duas casas há um piano do fundo do mar
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Na rua de duas casas há um piano do fundo do mar

Escreveria sobre a Senador Pompeu, que há tempos deixou o perfil de morada, virou uma rua de negócios. Mas eis que, na sala de uma das duas únicas casas que restaram, está um H.Kohl legítimo, piano alemão resgatado do mar cearense cerca de 70 anos atrás. Afundou quando havia uma guerra mundial. Está vivo, mas o tempo o adormeceu
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O piano H.Kohl é uma relíquia adormecida numa sala de casa no Centro de Fortaleza  (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS O piano H.Kohl é uma relíquia adormecida numa sala de casa no Centro de Fortaleza

Sim ao convite para entrar e veio o sobressalto. O personagem está após a porta e antes do longo corredor que cruza a casa. Estaticamente imponente. Divide o espaço com o sofá, uma bicicleta encostada, aparelho de som, fotos de família e outros pertences caseiros. Na parede, também um quadro antigo com a imagem do Sagrado Coração de Jesus. Mais informações sobre o inesperado e a revelação: aquele é um H.Kohl legítimo. Uma relíquia em pleno Centro de Fortaleza, na sala do imóvel 1.627 da rua Senador Pompeu.

É um piano alemão original. Idade incerta e não sabida. Talvez centenário ou mais que isso, pelos fatos relacionados a ele. Teria cruzado terras e mares até ser fincado, já há alguns anos, no centro alencarino. Está na sala de uma casa modesta, em silêncio. Entre esses acontecimentos, sobreviveu a águas profundas, após um naufrágio na costa cearense, à época da 2ª Guerra Mundial. Foi resgatado, restaurado, está vivo, embora adormecido, desafinado.

É piano só de aparentar. Virou móvel. Escora porta-retratos, louças em forma de anjos, bibelôs e adornos. Na parede acima está a foto do falecido coronel João Batista de Sousa Brandão, o dono.

A pauta virou, como dizemos no jargão jornalístico. Foi-se a ideia de escrever sobre a rua de apenas duas casas em 14 quarteirões, que há anos é endereço de lojas, clínicas, lanchonetes, borracharias, farmácias, ambulantes, todo tipo de comércio e serviço e quase sem residência. Onde mais vendem do que habitam. A presença de um piano naquela sala foi arrebatador.

Em bom estado, madeira maciça, verniz fechado, entalhes nas colunas laterais, só uma das teclas não seria original. Sob a tampa do teclado, os dizeres "Kaiserlich und königlich Hof piano forte fabrik" ("Fábrica imperial e real de pianos da Côrte"). Slogan da H.Kohl, empresa que foi sediada em Hamburgo, berço de grandes musicistas. Era prestigiada pelo império austro-húngaro, que existiu entre 1867 e 1918.

(Que mãos passaram antes por aquele piano? De onde vinha, aonde iria? Quem foi e quem seria seu dono antes do naufrágio, antes de chegar numa casa no Centro de Fortaleza?)

O H.Kohl "conterrâneo" está há 70 anos naquela via central que, por quase dois quilômetros — entre as avenidas Leste-Oeste e Domingos Olímpio — restou-se tomada por endereços comerciais. Além da casa 1.627, apenas a 1.631, com quem é geminada, ainda são residenciais. Já quiseram comprá-las, confirmam as proprietárias. Ambas têm cerca de quatro metros de frente e meio quarteirão de comprimento. Outras moradas no trecho são apenas quitinetes.

O piano está sob o teto de uma família de músicos, de raízes pernambucana e cearense, um deles muito renomado. Fátima Brandão, 72, é sobrinha-neta do maestro, compositor e pianista Mozart Brandão, nascido em Recife e radicado desde a infância no Ceará, um virtuoso da música clássica brasileira.

Foi o avô dela, o coronel João Batista de Sousa Brandão, pai de Mozart, que adquiriu o instrumento na década de 1950. Flautista e pianista, ex-maestro da banda de música da Polícia Militar do Ceará, ex-prefeito por nomeação e delegado idem de algumas cidades do Interior, como Camocim e Aracati, foi assim que teria se aproximado do piano naufragado.

Brandão foi informado da carga que estava no navio afundado nas águas entre Aracati (CE) e Natal (RN). O episódio foi pouco antes do fim da 2ª Guerra. Fátima não lembrava o nome da embarcação. Havia mais objetos disponíveis, mas o encantamento foi pelo piano. Manifestado formalmente o interesse pelo item, ela diz que o tio-avô pagou tributos e taxas federais, estaduais e municipais e resgatou o H.Kohl para casa.

Fátima não sabe datas precisas de quando o instrumento chegou à Senador Pompeu. O imóvel era recém-adquirido. Teria sido na gestão Menezes Pimentel, governador do Ceará (como eleito e como interventor nomeado por Getúlio Vargas) de 1935 a 1950. "Minha tia (Maria de Jesus, filha dele, 89, convalescente) me disse que o coronel chegou a pedir autorização ao governador para comprar o piano".

João Batista morreu em 1985. Tinha 94 anos. Ia para a missa na Igreja do Carmo quando foi atropelado, a dois quarteirões de casa. Mozart Brandão já era conhecido nacionalmente quando o pai arrematou o piano. Morava no Rio de Janeiro. Teria deixado as digitais algumas vezes naquele teclado. Morreu em 2006, aos 85 anos.

É a história oral reproduzida na biografia familiar. Não sabem exatamente onde estariam os poucos registros documentais dessa epifania. Os detalhes vão se desgarrando. A tia Maria, segundo Fátima, lembra e deslembra dos momentos. Ela e o tempo.

Pela localização citada por Fátima, o tenente-coronel Gustavo Augusto de Araújo Chaves Pereira, historiador do Exército e assessor cultural da 10ª Região Militar, deu indicações sobre a embarcação que transportava o piano. Teria sido o navio Siqueira Campos, que declinou em 1943 no mar de Aracati. Havia uma guerra mundial em andamento.

Ele navegava de Recife para Fortaleza, em comboio com o navio Cuiabá e sob escolta dos caça-submarinos Juruá e Jaguarão, a 500 metros um do outro. Temia-se por ataques das forças do Eixo (Alemanha-Itália-Japão) naqueles dias bélicos. Aquela seria a última pernada da viagem até a capital cearense. O Siqueira Campos era um navio misto, de carga e passageiros. Havia sido fabricado na Alemanha em 1907 e teve um primeiro nome de batismo: Gertrud Woermann.

Na noite de 24 de agosto, sob ventos intensos e águas agitadas, um sentinela teria se precipitado e avisado pelo rádio do ataque de um suposto submarino alemão. Foi o suficiente para o pânico e o desfecho de manobras arriscadas e desastradas dos comandantes. Próximo da costa de Aracati, o Cuiabá e o Siqueira Campos se chocaram.

O primeiro seguiu com avarias até Fortaleza; o segundo, casco danificado, afundou dias depois na praia de Uruaú, próximo a Beberibe (ainda teriam tentado seguir a rota até a Capital). Os U-bouts alemães não estiveram no percurso naquele dia. Sobrou pelo menos um piano.

Da rua Senador Pompeu, naquele último pedaço com casas, resta o entorno deteriorado. Adriana Nascimento, 48, é a vizinha de Fátima. Não quis ser fotografada, permitiu a imagem da fachada. Mora há 40 anos no local, sua mãe, já falecida, chegou ainda jovem ao endereço.

Relembra que havia outra aura. Hoje há lixo, mato, piso solto, insegurança, falta de iluminação pública, população de rua vivendo sob tábuas e papelões na praça Clóvis Beviláqua. São também vizinhos — em tetos indignos. "Quando chega por volta de cinco e meia, seis da tarde, já fica tudo deserto, vazio, principalmente fim de semana", reclama Adriana.

O piano é a poesia derradeira de uma rua descuidada, de lares que vão se apagando.

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