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A PEC do fim do mundo
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A PEC do fim do mundo

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Tipo Notícia

Em meio a um ambiente político extremamente polarizado, parece haver apenas um ponto em comum entre a esquerda e a direita: as críticas à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública. A proposta de mudança na Constituição Federal causa incômodos em um espectro que se estende desde delegados, peritos e militares até governadores alinhados ao governo Lula. Uma leitura menos apressada da proposta, contudo, pode ser útil para compreendermos como a PEC pode contribuir para o combate ao crime organizado e a redução da criminalidade. É o que esta coluna pretende fazer.

A Constituição Federal afirma, em seu artigo 144, que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos. As competências da União não ficam tão explícitas no texto, fazendo com que a principal responsabilidade sobre a segurança pública recaia sobre os governos estaduais.

Há muito tempo que o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) deixaram de ser preocupação apenas de seus estados de origem, passando a operar de forma transnacional e com uma agilidade que nem de longe a burocracia estatal possui. Como o poder público pode atuar de forma coordenada, em âmbito nacional, se cada Secretaria da Segurança Pública é um ente autônomo?

Essa fragmentação faz com que hoje o país disponha de 27 carteiras de identidade estaduais, 27 modelos de boletim de ocorrência, 27 formatos de mandados de prisão e 27 certidões de antecedentes criminais distintas. Além disso, os dados produzidos em cada secretaria da segurança pública não são uniformizados. Cada estado conta com sua própria base de estatística criminal que nem sempre conversa com a do estado vizinho. Com o avançado processo de digitalização dos serviços públicos, essa variedade de documentos e registros não faz mais sentido algum.

A PEC propõe uma mudança no artigo 21 da Constituição, que versa sobre as atribuições da União, incluindo o seguinte item: "XXVII - estabelecer a política nacional de segurança pública e defesa social, que compreenderá o sistema penitenciário, instituindo o plano correspondente, cujas diretrizes serão de observância obrigatória por parte dos entes federados, ouvido o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, integrado por representantes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na forma da lei".

A expectativa é que o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social possa oferecer ao Estado brasileiro uma visão mais coordenada sobre o assunto, além de propor diretrizes básicas que venham a ser cumpridas por todos os entes federativos. A portaria que regulamenta o uso da força policial, publicada em janeiro deste ano pelo Ministério da Segurança Pública, é um bom exemplo disso. Há parâmetros mínimos a serem cumpridos pelas polícias e a definição disso não pode ficar ao bel prazer dos governadores de plantão.

Uma emenda à PEC incluiu ainda os guardas municipais e os agentes de trânsito no rol dos órgãos de segurança pública descritos pelo artigo 144 da Constituição Federal. Em fevereiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia decidido pela constitucionalidade da atuação das guardas municipais em ações de segurança urbana, desde que não se sobreponham às atribuições das polícias Civil e Militar.

Criado em 2018, por meio de uma lei ordinária, o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) passa a ser constitucionalizado, como já acontece com o Sistema Único de Saúde (SUS). Sua coordenação ficará a cargo da União, "mediante estratégias que assegurem a integração, cooperação e interoperabilidade dos órgãos que o compõem nos três níveis político-administrativos da Federação".

A PEC não seria alvo de tantas críticas se a popularidade do Governo Lula estivesse mais elevada. Há um movimento de transferência de responsabilidades dos Estados para o Governo Federal. O governador Elmano de Freitas (PT) cobrou que a PEC incluísse a lavagem de dinheiro e a progressão do regime de pena. Governadores de direita se sentiram ameaçados em sua autonomia. O escopo da proposta, como foi demonstrado, não é esse.

Os governos estaduais permanecem independentes, mas devem cumprir algumas diretrizes nacionais básicas. Penas mais duras podem ser objeto de projetos de Lei que não alterem a Constituição.

Os governadores se veem acuados pelo avanço do crime organizado, mas não é uma emenda constitucional que fará essa mágica de solucionar os problemas locais. Se pensarmos a segurança pública a partir de um tripé, teremos, a partir da aprovação da PEC da Segurança Pública, a constitucionalização do SUSP, a atualização das competências da Polícia Federal (PF) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e a criação dos fundos nacionais de Segurança Pública e Política Penitenciária, como já ocorre com a Educação, por exemplo. É a base de uma política pública: governança e recursos financeiros.

Sem a PEC, o Governo Federal não tem suporte legal para fazer a coordenação da segurança pública. A União permanecerá de mãos atadas e sendo cobrada por algo que não é de sua inteira responsabilidade. A proposta visa corrigir essa distorção, apenas. Parece pouco, mas já é muita coisa.

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