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Relatos selvagens de uma semana violenta
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Relatos selvagens de uma semana violenta

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Tipo Notícia

Os assassinatos listados a seguir ocorreram em um intervalo de apenas três dias. Pela variedade da forma de atuação, do perfil das vítimas e da localização das ocorrências, eles podem ser considerados uma amostra representativa da violência urbana que assola Fortaleza há mais de uma década, com breves intervalos de redução na dinâmica da letalidade.

O empresário Vinícius Cunha Batista, proprietário da Rádio Uirapuru, com operação no Vale do Jaguaribe, foi executado a tiros, na manhã da última quarta-feira, 30, no bairro Luciano Cavalcante, em Fortaleza. O radialista foi abordado por dois homens quando se dirigia ao seu veículo, uma camionete branca, após sair de uma padaria.

Pelo menos cinco disparos de pistola .380 atingiram o corpo da vítima, que não possuía antecedentes criminais. Vinícius Cunha morreu no dia do próprio aniversário, ao completar 47 anos.

No feriado do Dia 1º de Maio, as irmãs Maria Beatriz dos Santos, 20, e Bianca dos Santos, 15, foram assassinadas a tiros no espigão da Vila do Mar, no bairro Barra do Ceará. O ataque partiu do mar. Os homens chegaram atirando em um bote a motor e uma moto aquática. Bianca dos Santos chegou a ser levada para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Cristo Redentor, mas não resistiu aos ferimentos. As vítimas produziam conteúdos sob a forma de mininovelas para as redes sociais, com milhões de visualizações, abordando o cotidiano do bairro.

A adolescente era namorada de Antônio Victor de Araújo, conhecido como "Moskow", e estaria grávida de 2 meses. Nos vídeos, é possível ver a interação entre eles. Moscow seria o alvo original do ataque, mas como ele não foi encontrado no momento do atentado, os agressores acabaram vitimando as duas irmãs.

Horas depois, cinco pessoas foram baleadas em um campo de futebol, também na Barra do Ceará. Dois homens foram presos suspeitos de participação no ataque. A polícia investiga se a ação teria sido uma forma de represália pelo duplo homicídio.

Antônio Victor de Araújo, o Moscow, foi uma das pessoas presas. Ele, contudo, nega as acusações.

Na última sexta-feira, dia 2, uma mulher foi executada na avenida Sargento Hermínio, entre as ruas Odete Pacheco e Aristides Barreto Neto, no bairro Monte Castelo. Ao ser abordada a tiros por dois homens em uma bicicleta, em uma parada de ônibus, a vítima tentou escapar dos disparos entrando em um coletivo que operava a linha Antônio Bezerra/Sargento Hermínio/Centro. O veículo havia acabado de parar para o embarque de passageiros. Os criminosos, no entanto, permaneceram atirando. Imagens do circuito interno mostram o desespero dos passageiros. A mulher morreu no local. No sábado de manhã, ainda se podia ver as marcas do crime na parada de ônibus.

Em nota, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) disse que a vítima, de 37 anos, tinha antecedentes por lesão corporal, roubo a pessoa e furtos. A identidade dela não foi revelada pelos órgãos de segurança. O caso está sendo investigado pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP).

Os casos elencados pela coluna poderiam ser resumidos em uma só frase: quatro pessoas foram assassinadas na semana passada, em Fortaleza. É preciso, contudo, que não percamos nossa sensibilidade e indignação diante de crimes como esses.

Além disso, diversas mortes ocorreram no mesmo período e nunca saberemos os nomes das vítimas e as circunstâncias nas quais elas perderam suas vidas. O que chega aos meios de comunicação é apenas um recorte de tudo o que acontece.

O desafio de se manter sensível ao que ocorre vale também para quem escreve sobre o assunto. Quando descrevo as narrativas dessas mortes, de certa forma, busco um antídoto para a insensibilidade. Um sentimento de pesar perpassa essas linhas. Cobrir esse tipo de ocorrência é desgastante emocionalmente. Há domingos em que tudo que a gente queria saber mesmo era de praia e de uma cervejinha à beira do mar, mas o dever de publicar a coluna se impõe.

Guardar essas memórias, registrá-las nos meios físicos e digitais, é fazer justiça às vítimas e às famílias. Nossa sociedade é uma máquina de produzir esquecimentos, em especial daquelas pessoas que não toleramos a existência. Paul Ricoeur, filósofo francês, explorou o conceito de "querer não saber", ou seja, uma forma de esquecimento, de cumplicidade na ignorância ou má-fé.

Trata-se de uma escolha ativa de ignorar a verdade, ou de não se esforçar para saber, por uma razão obscura ou interesse próprio. Para lidar com tanta violência, é mais confortável que a gente não queira saber o que está acontecendo. Lidar com tudo isso é um fardo, por certo, e o que mais se vê é a velocidade com que relatos selvagens como os descritos se sucedem uns aos outros.

Vamos nos esquecendo, nos assombrando com o novo e esquecendo-o novamente, em um ciclo vicioso em que os fatos perdem seu peso. Os governos contam com isso e se regozijam com nossa amnésia coletiva.

Quando ônibus são queimados na Barra do Ceará, um dia após o duplo homicídio das irmãs influenciadoras, o recado da população ressoa claro e límpido: "Estamos fartos de tanta violência e não queremos cair no esquecimento". Às vezes, é necessário que as lembranças não fiquem somente na mente, mas sejam gravadas a fogo sobre o metal.

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