No correr dos ponteiros, um minuto pode parecer não ter tanta relevância. Para quem tem alergia, no entanto, esse pode ser o tempo de ter a vida salva por meio da caneta de adrenalina autoinjetável. O medicamento é o que apresenta ação mais ágil em crises graves, surte efeito em 60 segundos ou menos, mas ainda não é oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Para tentar mudar essa realidade, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 85/24, que visa a fornecer gratuitamente o medicamento a quem precisa, mediante apresentação de laudo médico. Um dos órgãos que apoiam a iniciativa é a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai).
Fábio Chigres Kuschnir, presidente da instituição, explica que a caneta é recomendada para casos de anafilaxia, uma reação de hipersensibilidade que pode evoluir para choque ou falência respiratória. Diz que a anafilaxia é uma reação generalizada do corpo, quando a pessoa entra em contato com aquilo que causa alergia. Acrescenta que em crianças é mais comum, que o agente causador da alergia seja leite, ovos... Em adultos, crustáceos. Pode ser a picada de algum inseto venenoso, algum medicamento, antibiótico, anti-inflamatório. Tem varias causas relacionadas, pontua o especialista.
Conforme o médico, quadros como esses podem fazer o paciente apresentar manchas vermelhas pelo corpo e atingir outros órgãos além da pele, como as vias aéreas superiores, fechando a garganta. "Eu posso ter uma liberação muito grande do que a gente chama de histamina (mensageiro químico que controla reações corporais), e aí levar a uma vasolatação (dilatação dos vasos sanguíneos), o aumento do calibre dos vasos e a pressão cair muito, o que a gente chama de choque anafilático", explica o alergista.
Nesses momentos de reação alérgica, o tempo vira frações de segundos cruciais. Fábio Chigres pontua que a caneta de adrenalina autoinjetável é o medicamento que atua de forma mais rápida contra a doença, amenizando os sintomas e devolvendo o bem-estar aos pacientes. "A adrenalina, ela funciona de forma rápida, revertendo a obstrução das vias aéreas, diminuindo o edema, aumentando a circulação sanguínea através da ativação do batimento cardíaco e também pela contração do vaso sanguíneo, retornando a pressão ao habitual. Isso se dá em torno de um minuto", diz o médico.
Adrenalina também é administrada nos hospitais — mas o deslocamento até a unidade de saúde precisa ser em tempo hábil. Fábio pontua que a caneta é fácil de ser manejada, podendo ser manipulada por qualquer pessoa que não seja da área da saúde, inclusive pais de paciente.
Em casos de crises alérgicas outros medicamentos podem ser administrados, mas eles demoram de duas a três horas para surtirem efeito. "A indicação pra esses quadros é a adrenalina, é a primeira escolha. Age em um minuto ou menos por vezes. É muito mais rápida, por exemplo, que os antialérgicos habituais", explica o presidente da Asbai.
"Os antialérgicos começam a funcionar dentro de 20 minutos, e eles diminuem por exemplo as manchas pelo corpo, os espirros, as coceiras, mas não revertem a obstrução das vias aéreas, não revertem a queda da pressão arterial. Então, além de não agir imediatamente, não reverte aqueles fatores que são potencialmente fatais. O tempo de ação é muito menor", frisa.
Mesmo com efeito rápido, a caneta de adrenalina autoinjetável não é oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e nem há tramitação na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para registro e comercialização dela no Brasil. Ou seja, fármaco precisa ser comprado por meio de importadoras. Além da pesquisa por locais que importam o produto, pais e pacientes também precisam preparar o bolso, pois atualmente o custo de uma caneta do tipo está entre R$ 1.800 a R$ 2.300. Esse, pelo menos, foi o preço médio encontrado pela cearense Vivian Santos, 34.
Mãe do pequeno Lucas, de 5 anos, a servidora pública descobriu que o filho era alérgico à proteína do leite de vaca quando ele ainda tinha meses de vida. O susto de ver o pequeno em crise foi tanto que ela ainda tem na cabeça cada detalhe da aflição que viveu. "O pouquinho (de leite) que eu dei pra ele experimentar, ele teve uma reação fortíssima, vomitou, ficou todo vermelho, tossindo, espirrando, e na hora eu já vi que era uma reação alérgica, dei antialérgico e corri para o hospital. Nos exames a gente descobriu que os níveis da alergia dele eram muitos altos, o nível chegava à anafilaxia."
Desde então Vivian e o marido passaram a adotar cuidados para evitar situações como essa, mas ainda assim viveram alguns sustos quando o pequeno Lucas teve contato de forma acidental com leite. O último deles foi no fim do ano de 2020, quando eles viajaram para visitar a família na serra. "Ele (Lucas) ingeriu por acidente uma comida que tinha um pouquinho de queijo ralado e ficou tossindo, espirrando, rouco, já estava em crise anáfilatica. A gente foi pro hospital, ele teve que tomar adrenalina. Só o antialérgico não funcionou", conta a servidora pública.
O episódio foi o que levou o casal a procurar pela caneta de adrenalina, sob recomendação de uma alergologista. Devido ao preço alto, eles chegaram a tentar conseguir o fármaco na Justiça, mas tiveram o pedido negado e acabaram comprando o dispositivo como última saída. Vivian conta que ainda não precisou usar, mas já leu o manual com as instruções e está preparada. As canetas, no entanto, têm duração de um ano cada e já estão próximas de vencer.
Já com Larissa Maria Barbosa, 21, a história foi diferente. A jovem desenvolveu reações alérgicas a crustáceos, a medicamentos como corticoides e até ao próprio tratamento que chegou a realizar para diminuir as reações alérgicas, que era feito por injeções de ampolas. Ela conta que tem alergias leves "praticamente todos os dias", mas que costuma ter reações mais fortes em alguns momentos do ano.
"Sempre vou para o hospital e tomo adrenalina, soro, cortisona e volto pra casa no dia seguinte só. Já tentei ter acesso (à caneta), mas não consegui, é caro e tem que ser importada. Acho que era necessário (ter distribuição), visto que como medida de emergência uma caneta dessas pode ser a diferença entre a vida e a morte de um ataque anafilático grave", completa.
Além do Projeto de Lei 85/24, que visa a incluir o fármaco na lista de medicamentos fornecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), há o PL nº 2.527/2023 que prevê a venda de epinefrina em ampolas em farmácias de todo o País, sob prescrição médica. Proposta, contudo, não aparenta ser a solução.
O médico Fábio Chigres explica que a ampola só está disponível atualmente no Brasil para venda hospitalar. Uma das razões é que o dispositivo precisa ser administrado por profissionais de saúde, pois necessita de técnica. Já a caneta de adrenalina é prática e segura para administração de terceiros.
Explicação é endossada pela médica alergologista Janaira Ferreira. Segundo especialista, a ampola requer treinamento técnico para ser aplicada, pois é preciso "quebrar ampola, aspirar dose certa, usar a agulha correta e com habilidade", com risco de acidentes em caso de administração incorreta.
"Já a caneta de adrenalina contém a dose de medicação certa, sem necessidade de manipulação pelo paciente, além de ter dispositivo que protege a agulha após a aplicação de forma a evitar acidentes e, portanto, é autorizada para uso fora do hospital e até para autoadministração pelo paciente, através de recomendação médica", completa a médica, que atua no Hospital Infantil Albert Sabin (Hias).
O médico Fábio Chigres destaca ainda que a comercialização da caneta de adrenalina no Brasil tem como barreira o fato de não ter aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pois não passou por ensaio clínico. Procedimento é necessário para confirmar o mecanismo de ação de medicamentos, os possíveis benefícios e seus eventos adversos.
No entanto, o especialista frisa que uma das etapas do processo consiste em dar o medicamento para um grupo de pacientes e um placebo (simulado fake da medicação) para outro grupo, ambos com a doença. Nesse sentido, não haveria possibilidade de realizar o processo em casos de anafilaxia.
"Não posso dar placebo para pessoa que tá em risco de vida. É como se pulasse de avião uma pessoa com paraquedas e outra sem paraquedas", diz. Segundo ele, pais e pacientes que buscam direito ao remédio na Justiça geralmente têm o pedido negado: "A maioria dos juízes negam desconhecendo totalmente a realidade e a gravidade da doença, e isso cria um percurso muito difícil para essas famílias".
Dados da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai) apontam que só entre 2011 a 2019 o Brasil registrou mais de 5.700 hospitalizações por anafilaxias. Já em relação aos óbitos, foram mais de 500 no período analisado, conforme presidente da entidade, Fábio Chigres.
Procurada pelo O POVO, a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) informou que não é possível fazer um balanço de internações que ocorreram no Estado em decorrência da anafilaxia, mas frisou que o atendimento se dá em unidades da rede, como o Hospital Infantil Albert Sabin (Hias).
Unidade é referência no tratamento de casos mais complexos e graves de alergias. A médica Janaira Ferreira, que atende na instituição, frisa que o atendimento de uma reação alérgica grave tipo anafilática deve ser feito na unidade de emergência mais próxima do paciente, mas para investigar o agente causador da anafilaxia é necessário um especialista em alergia e imunologia.
"Em qualquer serviço de emergência, anafilaxia é uma prioridade. Entra como ficha vermelha e a conduta imediata é a aplicação de adrenalina intramuscular no vasto lateral da coxa. Mas ainda precisamos treinar mais médicos das emergências sobre o rápido reconhecimento de uma reação anafilática bem como a importância da aplicação rápida dessa medicação (adrenalina)", explica a alergologista.
"No geral, não temos internamentos por anafilaxia, exceto em casos muito graves de necessidade de entubação e suporte ventilatório em UTI, pois a maioria dos pacientes responde rápido à adrenalina e fica apenas em observação no pronto-socorro", completa.
Já na capital Fortaleza, dados da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) apontam que nos últimos três anos (2021, 2022 e 2023) foram registradas dez internações relacionadas a anafilaxia. Ainda segundo pasta, "o motivo do baixo registro pode ser a não necessidade de internação".
"Os usuários que suspeitam de quadro alérgico podem buscar os 118 Postos de Saúde de Fortaleza. Após consulta com as Equipes de Saúde da Família (ESF), o usuário é encaminhado ao especialista na Rede Especializada para consulta e exames complementares. Em crises de alergia, os pacientes devem se dirigir a uma das 12 UPAs na Capital", orienta ainda órgão de saúde.